sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

Uma Tarde no Museu da Língua...

Talvez eu possa dizer que aquela era a minha primeira vez em São Paulo. De fato, era a primeira vez que eu tentava conhecer um pouco da cidade em tão poucos dias. Havia chegado com minha irmã e as crianças com intuito de brincar, conhecer os parques de diversão espalhados pela cidade. Mas não conseguiria voltar sem visitar o Museu da Língua Portuguesa. Para mim, isso soava quase como um pecado. Deixei minha irmã e as crianças na casa de uma amiga de longa data, que havia muito tempo que não víamos. Amiga de infância, que assim nos apresentou à sua pequena: “esses são amigos da mamãe de muito, muito tempo. Desde que a mamãe tinha seu tamanho. A gente já brincou muito, a gente já brigou muito. E veja só, até hoje a gente fica feliz por se encontrar.” Ela disse o essencial, pensei. Brincamos e brigamos juntos. Vivemos juntos. Criamos vínculos indeléveis. Escrevemos uma história. Juntos. E, mesmo depois de tanto tempo, pudemos dispensar as formalidades. A intimidade conquistada na infância estava preservada. Como se nunca tivéssemos parado de brincar e brigar juntos. Éramos os mesmos amigos de outrora. Mas isso é prosa pra outro momento. Voltemos ao Museu.

Cruzei novamente a cidade inteira com ajuda da mocinha do GPS. Um calor daqueles pra carioca nenhum colocar defeito. Ainda mais num carro alugado sem ar condicionado, sem direção hidráulica. Enfim, com quatro rodas e mais nada. A previsão de Raquel, minha amiguinha do GPS, era que chegaríamos de volta ao hotel em aproximados vinte minutos. Levei uma hora e meia. Já estava me acostumando. Ela nunca acertava. Afinal, acho que ela ainda não havia percebido que nós estávamos em São Paulo. Senti saudade dos meus engarrafamentos no Rio. Fui para o Museu de ônibus. Caminhei da Augusta até a Consolação e esperei um ônibus que me levasse à Estação da Luz. O Museu da Língua encontra-se instalado no prédio da antiga e belíssima estação de metrô. Na chegada, fui recebido por um belo sorriso de D. Cora Coralina, cuja foto estava estampada em um livreto logo na entrada. Dona Cora Coralina na porta já tornou o ambiente o mais acolhedor possível, era como se eu fosse visitar uma casa simples, daquelas que a pessoa já pede pra gente não reparar, e a gente senta à mesa, ela serve um café na caneca de ágata branca com friso preto, parte um pedaço de broa de milho, e a gente fala da vida, conta novidades e, mesmo sem querer, a gente acaba reparando que a “sabedoria se aprende com o corriqueiro, com o simples da vida”.

A exposição atual tinha como tema ninguém menos que o poeta português Fernando Pessoa. Sim, ele mesmo. O primeiro poeta de que me dei conta na vida, cujos versos na voz passional de Maria Bethânia haviam me impressionado e despertado a minha própria poesia há alguns anos atrás. O Poeta me recebeu como quem recebe um velho amigo. Não sem deixar de ser cerimonioso, obviamente. Então, fui seguindo seus passos. Descobrindo novos e já conhecidos versos, como quem vai atrás do dono da casa, que segue à frente abrindo portas, acendo luzes, enquanto a gente vai espiando cada cômodo, reparando na mobília, no bom gosto da decoração, enfim, tentando criar intimidade com o ambiente. O melhor ainda estava por vir. Seguimos para o terceiro andar. Em uma sala de projeção, bastante aconchegante, fomos convidados a assistir a um vídeo sobre a origem da nossa Língua. Sobre as influências, sobre os diferentes modos de falar o português em Portugal, no Brasil, em Angola, Moçambique, Cabo Verde etc. Obviamente, que a minha Cantora, com sua voz de trovão, para mim, de tão íntima, inconfundível, veio também me ciceronear. A ela coube dizer a palavra “amor”. Fez-me sentir em casa. Aquela maravilhosa sensação de chegar numa festa cheia de gente estranha, num lugar ainda desconhecido, e dar de cara com amigos de longa data. Fomos convidados a penetrar no mundo das palavras, um mundo por trás da tela, onde as palavras tomam forma, solidificam-se e voam sobre nossas cabeças e sob nossos pés. Lá dentro, fui tomado por uma emoção sem par quando ouvi uns versos de Monteiro Lobato, num diálogo entre a boneca Emilia e o senhor Sabugo:

"– A vida, senhor Visconde, é um pisca-pisca. A gente nasce, isto é, começa a piscar. Quem pára de piscar chegou ao fim, morreu. Piscar é abrir e fechar os olhos – viver é isso. É um dorme e acorda, dorme e acorda, até que dorme e não acorda mais [...] A vida das gentes neste mundo, senhor Sabugo, é isso. Um rosário de piscados. Cada pisco é um dia. Pisca e mama, pisca e brinca, pisca e estuda, pisca e ama, pisca e cria filhos, pisca e geme os reumatismos, e por fim pisca pela última vez e morre. – E depois que morre?, perguntou o Visconde. – Depois que morre, vira hipótese. É ou não é?"
Emocionei-me por reconhecer nessa sabedoria genuína, a sabedoria que me havia ensinado, quando ainda muito novinho, um de meus sobrinhos, que também contava os dias justamente através de “dorme-e-acorda”. Lembrei-me dele, ainda molequinho, falando: “Tio, faltam quantos ‘dorme-e-acorda’ pra gente ir à praia?”. E ele ficava feliz quanto menor fosse o número de ‘dorme-e-acorda’ que restasse. Sabedoria de criança, sabedoria de quem vê o mundo simples como ele deve ser. Sem complicar. E, sem nem desconfiar, nem se preocupar, como convém às crianças, ele, que mal sabia falar, citava Monteiro Lobato.

Senti como nunca um orgulho imensurável pelo privilégio de falar a mesma língua da Emília e do senhor Visconde, a mesma língua de Monteiro Lobato, de D. Cora Coralina, de Bethânia, de Drummond, de João Cabral de Melo Neto, de Guimarães Rosa, de Jorge Amado. Satisfação em poder ouvir e sentir como só um nativo da língua portuguesa pode sentir, a essência, a verdade das palavras ditas nas canções de Ari Barroso, Vinícius de Morais, Chico Buarque de Holanda, Caetano Veloso, Cartola, Paulo Cesar Pinheiro e tantos outros. Enfim, orgulho de pronunciar “coqueiro” tão brasileiramente como Dorival Caymmi, ou seja, “sem perder sequer um quinto de vogal”.

Deixando pra trás toda aquela gente querida, aqueles nobres inquilinos do Museu da Língua, saí com um bem estar daqueles de quando acabamos de cumprir uma visita que estávamos devendo não era de hoje. E assim foi. A gente se encontrou, depois de tanto tempo, e papo vai, papo vem, as horas passaram e eu nem me dei conta. Saindo pelo alto da Estação, avistei aquela multidão, que se apinhava esperando o trem. Brasileiros de todo canto. Gente de todo jeito. De muitos sotaques. Voltando cansada pra casa, depois de um dia de trabalho árduo. Gente que passa por ali todos os dias e, em sua grande maioria, segue alheia aos vizinhos de cima. Muitos ali, personagens típicos da poesia de Drummond, de D. Cora Coralina, das estórias de Guimarães Rosa e João Cabral e que, certamente, nunca nem ouviram falar desse pessoal todo. Fiquei ali observando, meio constrangido até, um tanto envergonhado, talvez, de enxergar tanta poesia naquilo tudo. Tratei de ir embora antes que desconfiassem. Saí da frente pra não atrapalhar aquela gente apressada, que não tinha tempo a perder com essa história de poesia, tinham era que correr pra casa, pra preparar a janta, lavar o uniforme, colocar os meninos pra fazer o dever. Dei uma última olhada pra trás, e de lá da varanda, vi o Poeta a me procurar na multidão, acenando, gritando: “E, então, valeu a pena?”. E, eu que já tinha aprendido, respondi de pronto: “Sim, valeu. Tudo vale a pena quando a alma não é pequena”.



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