quarta-feira, 15 de agosto de 2012

Silêncio confortável

Por todo o período em que minha avó esteve internada, nós nos revezamos para acompanhá-la no hospital. Aquela noite seria a minha vez de servir-lhe de acompanhante. Durante a visita, a fisioterapeuta veio fazer sua avaliação e nos disse que era preciso que o acompanhante conversasse bastante com ela, pois assim a vovó exercitaria a fala. No instante em que a doutora falou isso, eu olhei pra minha avó e disse: “ihh vó, logo hoje que é a minha vez. Não foi uma boa escolha. A senhora sabe que eu quase não falo nada”. Vovó esboçou um sorriso e com imensa dificuldade balbuciou: “você sempre falou o suficiente, meu neto”. Aquelas palavras me confortaram imensamente. Minha avó me conhecia como poucos. Nunca fui o tipo de pessoa efusiva, que demonstra sentimentos com facilidade. Sempre fui, em verdade, muito ensimesmado, cerimonioso. Causam-me desconforto e estranhamento até hoje pessoas muito expansivas, exageradamente íntimas, que necessitam a todo tempo de demonstrações de afeto, de declarações, de palavras. Sempre achei isso muito cansativo. Diante de minha avó, no entanto, eu sempre pude ser o mesmo menino calado, taciturno, curto de palavras, que gostava de subir à sua casa para ficar ao seu lado, em silêncio. Às vezes à beira da cama, vendo-a dobrar roupas recém-recolhidas do varal, outras vezes, encostado na maquina de costura, brincando com botões, carretilhas e retalhos, ou ainda, sentado à mesa, enquanto ela catava o feijão ou descascava legumes. Vovó não insistia em arrancar palavras de minha boca, não me enchia de perguntas o tempo todo. O silêncio entre nós era confortável. Ela compreendia que eu gostava muito mais de ouvir do que falar. “Meu filho, você não é de falar muito. Só observa.” Eu arqueava as sobrancelhas e sorria. Em silêncio.

Essa possibilidade de estar ao lado de alguém, podendo guardar meu silêncio, sempre me agradou. Desde menino, sempre pensei demais. A mente fervilhava, elaborava, analisava tudo, o tempo todo. Falar, para mim, sempre foi custoso demais. Até hoje. Trago em mim desde sempre esse desejo de silêncio, essa necessidade de aquietar-me. Pois somente quando me calo é que ouço a voz que fala dentro de mim. A voz daquele que, mesmo sendo eu, é um outro que mora em mim, que me conhece de fato, que me compreende e me aconselha. Aquele que se alimenta do meu silêncio, da minha mudez, que toma forma e habita meus pensamentos. Esse outro que surge no exato instante em que silencio. Preciso ouvi-lo. Sinto sua falta. Conto com ele. É ele quem me dá o equilíbrio, que me ensina a calar. Esse outro eu é quem segura firme as palavras que desejam sair de minha boca, e realimenta meus pensamentos, fazendo-os girar dentro de mim, transformando-os, aparando arestas, lapidando. É ele quem grita dentro de mim, tentando me proteger dos meus rompantes. É o tal que me faz respirar fundo, engolir a seco, e começa a contar comigo: “um, dois, três...”, sempre que pressente que hei de ganhar mais permanecendo calado. É obvio que nem sempre estou plácido, sereno, o suficiente para ouvi-lo. Mas é justamente nestes momentos em que não o deixo agir é que mais me arrependo. Falar demais sempre me faz muito mal. Assim como me incomodam profundamente pessoas muito prolixas e verborrágicas. Gente redundante, palavrosa, me irrita imensamente. Gosto muito de ouvir os que respeitam as pausas, que pensam antes de falar, os que permitem intervalos. Para mim, uma relação entre duas pessoas – seja ela qual for – atinge a perfeição quando o silêncio não causa desconforto ou constrangimento. Ter com quem falar é, às vezes, imprescindível, no entanto, ter alguém que consegue se calar ao teu lado é vital. Pois é na escassez da palavra falada que os pensamentos dialogam, as almas conversam. Meus amigos mais caros são esses que compreendem o meu silêncio, que respeitam a minha mudez intermitente, o meu exílio voluntário. São os que têm permissão para entrar na minha clausura, pois são capazes de caminhar ao meu lado sem fazer barulho. São aqueles que sabem ler os silêncios da minha cadência e não atravessam o meu ritmo. Sabem fazer soar com exatidão tanto as notas como as pausas dos meus compassos. Entendem a minha música.


Vovó e eu tínhamos esse refinamento. Ela conhecia o meu silêncio. Não precisava das minhas palavras para saber o que eu estava sentindo. Eram os nossos olhos que proseavam, trocavam confidências. O silêncio não incomodava. Naquela última noite em que estivemos a sós, quando lhe faltavam forças para dizer palavras, foi com o silêncio que nos despedimos. Foi porque aprendemos a silenciar que conseguimos trocar aquelas últimas palavras, sem dizê-las. Em pé ao lado da cama, enquanto eu olhava seu rosto, eu pensava no quanto eu amava aquela senhora, no quanto sua vida, suas estórias, seus ensinamentos tinham sido determinantes na construção da pessoa que eu havia me tornado. Ela me olhava nos olhos, como se ouvisse meus pensamentos. De novo, o silêncio. De minha parte, o silêncio habitual, das horas em que meus lábios cerram de tal maneira, que as palavras parecem não encontrar meios de escapar. O silêncio que minha alma necessita pra falar dentro de mim. Dela, o silêncio resignado, da impossibilidade física de falar. Nós ficamos um bom tempo, ali, de mãos dadas, olhando nos olhos um do outro. Trocando nossas últimas confidências silenciosas. Ela, então, num esforço tamanho, levou minha mão até o seu rosto e a beijou, com carinho. Suspirou profundamente. E, então, esboçou um leve sorriso. Apesar da tristeza que insistia em meu coração, eu intuí que se tratava de um momento muito especial. Com aquele beijo, com aquele leve sorriso, minha avó me dizia pela última vez o que nunca foi preciso de palavras para dizer. Naquele instante, eu me transportei no tempo, e vi novamente o menino que corria ao terreno baldio, catava três florezinhas no mato, corria pra entrega-las, e saía às carreiras, envergonhado, tímido. Naquele tempo, ela já me sorria e consentia com os olhos. O silêncio desde então prescindia das três palavras, as mesmas que meu coração ouviu naquela noite em que nos olhamos pela última vez. Ainda hoje, é esse silêncio confortável que ameniza a minha saudade, pois quando silencio é que ainda sou capaz ouvir a sua voz doce a trazer paz e conforto ao meu coração.

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sexta-feira, 10 de agosto de 2012

Aplausos ao tempo!

Apesar de termos desde sempre a plena consciência de que o tempo não para, vivemos praticamente alheios a este detalhe. Ainda bem que temos esta capacidade de abstrair o tempo, pois ela é sem dúvida a forma mais inteligente de se lidar com esta verdade inexorável que é a passagem do tempo. No entanto, o tempo parece querer nos fazer percebê-lo a todo instante. Para isso, ele se utiliza de suas artimanhas e mistérios sutis. E assim a vida vai apresentando-nos provas de que não há como fugir deste senhor que, sem a menor cerimônia, fazemos questão de evitar. Naquela noite, estávamos esperando o início do novo show que a cantora faria em homenagem à sua mãe. À mesma mesa, além de um companheiro de há tempos, estavam as duas senhoras que me falavam de sua amizade de mais de cinquenta anos. Amizade que nasceu em um tempo anterior ao sucesso de cada uma daquelas canções, imortalizadas na voz da mãe, que seriam interpretadas naquela noite pela filha, também cantora. De vez em quando, eu olhava o relógio para me certificar da hora. Estávamos ansiosos e, portanto, incomodados com o atraso no começo do espetáculo. Como sempre, preocupados com o tempo.

De repente, as luzes se apagaram. Soaram os primeiros acordes. Ouviu-se, então, depois de tanto tempo, a mesma ordem para que as redes fossem jogadas ao mar. Viram-se os mesmos gestos largos e circulares anunciando uma nova pesca milagrosa. “Valha-me Deus, Nosso Senhor do Bonfim. Nunca, jamais, se viu tanto peixe assim.” Por um instante, eu tive a impressão de ter ludibriado o tempo. De repente, fui tomado por uma sensação inexplicável, como seu eu tivesse tomado posse de uma lembrança que nunca foi minha. A emoção de reviver um momento que não vivi. Um déjà vu de algo nunca visto. Era como se o tempo estivesse me dando uma segunda chance, ainda que em verdade não tenha havido a primeira. De imediato, eu enxerguei o tempo a se mostrar naquele palco. Canções que ouvia desde menino, desde o tempo em que elas me encantavam apenas pela sonoridade, pois ainda não diziam nada sobre minhas histórias, sobre minhas lembranças. Durante todo o espetáculo, eu fiquei mergulhado nesse mistério. O tempo me levando a brincar em sua ciranda, convidando-me a girar em sua brincadeira de roda. Eu não tive escolha. “Vai como a criança que não teme o tempo”, a cantora grávida nos dizia. Sim, a cantora estava grávida. O tempo mais uma vez fazendo das suas. “Eu vi a mulher preparando outra pessoa. O tempo parou pra eu olhar para aquela barriga”. Chamou-me atenção o ciclo. Fez-me lembrar da história do deus grego – Cronos – que engolia os próprios filhos com medo de que estes viessem a lhe tirar o trono e o poder. O implacável tempo a devorar tudo que ele mesmo produz. Mas a grande mãe – Reia –engana até mesmo o Tempo, afim de proteger seu filho Zeus. A luta de Cronos e Zeus, que faz o pai vomitar todos os filhos devorados, devolvendo à vida o que é imortal. “A vida é amiga da arte. É a parte que o sol me ensinou. O sol que atravessa essa estrada, que nunca passou.” A música, a arte, trazidas de volta pelo tempo a todos nós, pobres mortais daquela noite. “Nossos ídolos ainda são os mesmos. E as aparências não enganam não.” O paradoxo do tempo que não para, mas que, no entanto, parece gostar de se repetir. “Vamos dar a meia volta, volta e meia vamos dar”. Ciclo. Ciranda. E a cantora seguia a nos dizer: “É você que ama o passado e que não vê, que o novo sempre vem!”. Confundindo-nos a mente. E assim seguimos a noite, inebriados, fascinados, tontos de emoção.

Ao fim do espetáculo estávamos todos maravilhados com a beleza das canções, com a pureza e força daquela voz, com a coragem e ousadia da filha, que com personalidade e talento indiscutível mantém viva a arte e a memória da mãe. No entanto, o que aplaudimos de fato foi o espetáculo que nos proporcionou o tempo. O tempo que fez questão de assumir o papel principal naquela noite. O tempo que renova. Traz o novo de novo. O tempo que passa. O tempo que engole, rumina, metaboliza, transforma e devolve, vomita. Recicla. Aplaudimos o tempo, o senhor da razão, que cicatriza feridas, cura dores, ameniza saudades, adormece paixões. O tempo que pode tornar banal a maior das complexidades. O tempo, este senhor tão bonito, que com uma mão tanto nos tira – juventude, beleza, pele fresca –, mas que com a outra nos dá com tamanha generosidade: equilíbrio, parcimônia, sabedoria, liberdade.

Aplausos ao tempo, “compositor de destinos, tambor de todos os ritmos”, que fez surgir os cabelos brancos na fronte do artista, do poeta, que esta semana completou seus setenta anos de idade, mas que, no entanto, nunca envelhece. O tempo que também esbranquiçou os meus cabelos, que também me transformou e me conduziu ao lugar que eu tanto sonhei. O tempo que me deu histórias, memórias, amores e dores, que tingiram de nuances mais intensos e encheram de significado aquelas canções, que hoje também são minhas, porque dizem de mim. E, como propôs o mesmo poeta, meu velho tempo, também eu quero entrar num acordo contigo e, para tanto, peço-te o mesmo prazer legítimo e movimento preciso, “de modo que o meu espírito ganhe brilho definido, e eu espalhe benefícios. Tempo. Tempo. Tempo. Tempo.”




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quinta-feira, 26 de julho de 2012

A festa tem que continuar...



Hoje, remexendo fotografias antigas, me deparei com umas fotos que registram um momento que por muitos e muitos anos se repetiu em minha vida. O beijo do vovô e da vovó nas festas de nossa família. Esse era certamente o momento mais esperado de todas as festas. Fosse aniversário dele ou dela, ou aniversário de casamento dos dois, a família inteira aguardava pelo momento do beijo. Era apenas um selinho. Suficiente para que a família toda fosse ao delírio. Era uma gritaria só. Vovó fazia aquela carinha de envergonhada, sorriso de canto de boca, olhar meio sapeca. E o vovô repetia a sequência de beijinhos, pra alegria de todos nós.

Naquele sobrado de nossa infância era assim, tudo era motivo pra festa. A gente se reunia o ano inteiro para comemorar aniversários, semana santa, dia das mães, dia dos pais, bodas, natal, ano novo. Nenhuma data era ignorada. Vovó se alegrava muito com a casa cheia. Minha mãe e minha tia, geralmente, passavam o dia na cozinha, ajudando a vovó a preparar a comida. À noite, a casa ficava lotada. Um entra e sai de bandejas e travessas pela cozinha. Todos ajudando a servir os convidados, enquanto vovó observava atentamente se todos já haviam sido servidos. Nós, as crianças, corríamos o tempo todo por entre as pernas dos adultos, catando um salgadinho aqui, um copo de guaraná acolá. Enquanto criança, minha preocupação era apenas essa, brincar, aproveitar o tempo com meus primos, correr, correr, correr, sem me dar conta do que estavam fazendo os adultos. Até que, de repente, minha mãe dizia, “vamos embora, vai pedir a benção aos seus avós.”. “Poxa, mãe, só mais um pouquinho!”. Eu descia com aquela cara de decepção e anunciava aos meus primos: “Não vou poder mais brincar. Já vou embora!”. Quando eu subia, a área já estava toda arrumada, vovó cortando e embalando pedaços de bolo pra todo mundo levar pra casa. “Bença, vó”. “Deus te abençoe, meu filho!”. Ela dava um beijo em cada um, e a gente se ia. Pra casa. Sem ela. Era ruim demais quando as festas acabavam. Mas, mesmo tristes, nós íamos pra casa, eufóricos, cansados de tanta brincadeira. Felizes. Sabendo que logo, logo, a festa começaria novamente.

Mas a vida vai passando tão depressa, que é quase imperceptível a mudança de papeis. O tempo que nós, crianças de outrora, nos tornamos adultos e passamos a nos divertir nas festas da família, apenas conversando, rindo alto, encarnando uns nos outros, enquanto as crianças continuam correndo por entre as nossas pernas, chega e a gente mal se dá conta. As mesmas brincadeiras, a mesma euforia de sempre. Vovó e vovô continuavam com seus beijinhos. E todos nós, adultos e crianças, de então ou de outrora, continuávamos ansiosos por este momento tão especial da festa. A alegria de minha avó era mais nítida, quanto mais apinhada de gente estivesse a casa. Ela não parava um instante sequer. “Mamãe, senta um pouquinho!”, “Vó, deixa que eu sirvo!”, e ela seguia como se não ouvisse. Sua alegria estava em festejar, em ter a casa cheia de filhos, netos, bisnetos, amigos, vizinhos. Era uma satisfação sem medidas. Assim, a festa seguia por boas horas. Até que se começava a recolher restos de comida, talheres e copos, a limpar mesas e cadeiras. Alguém ajudava a fechar a mesa antiga, recolhendo a parte dobrável que a fazia aumentar de tamanho, e colocando-a no lugar de sempre. Nesse momento, as crianças começavam a perceber que era hora de cessar a brincadeira. As mesmas carinhas de decepção e tristeza. “Não vou pode brincar mais, minha mãe vai embora”. Despedíamo-nos e voltávamos para casa, deixando mais uma vez a casa da vovó, mas levando a mesma alegria contagiante, a mesma sensação que ali, naquele encontro, naquela casa simples, com aquela gente toda reunida, em torno da vovó e do vovô, é que éramos mais felizes.

Quando a vovó partiu, e tivemos que nos despedir dela pela última vez, pensei, durante aquele momento de dor, de saudade, “a festa acabou”. E, desta vez, para sempre. Senti-me novamente como aquele menino, cuja alegria maior estava em chegar à casa dos avós, encontrar com as outras crianças, e brincar, sem se preocupar com mais nada. Veio novamente o mesmo aperto no coração, a mesma tristeza, de quando ouvia a voz de minha mãe me chamando pra ir embora. A festa acabou. Vamos embora pra casa. Sem ela. Mas, dessa vez, não havia a euforia, a certeza de que logo haveria festa novamente. No entanto, essa necessidade que minha avó tinha de celebrar a vida, sempre foi tão contagiante, que já havia se tornando vital também em cada um de nós. Não podíamos mais viver sem isso. A dádiva de tantos anos de convivência, o privilégio de termos aprendido, justamente com ela, a lidar com a morte e a saudade, não nos permitiu paralisar diante do chamado à vida. Naqueles primeiros meses, após sua partida, pareceu-nos entranho a princípio esse sentimento de continuar a festa. Mas pareceu-nos também muito incoerente agir de forma diferente. Ela mesma havia nos ensinado assim. Nós também tínhamos essa mesma alegria em receber, em comemorar, em estarmos juntos. Enfim, somos da raça dos que festejam, dos que celebram a vida. Mesmo respeitando a dor e o sofrimento. Mesmo sentindo saudade. Temos a mesma satisfação em reunir pessoas queridas. Um sentimento que transborda e parece contagiar os que estão por perto. Minha avó nos ensinou assim. Conviver com a saudade, sem deixar que ela minasse nossa alegria de viver. A morte não nos pode arrancar isso. A vida sempre nos convida a continuar. A vida impera, ela sempre nos demostrou isso. Logo compreendemos, então, que esta era a maior homenagem que poderíamos render a ela. Mantermos viva em nós a sua alegria pelo dom de estar viva.

Neste último fim semana, ao reunir minha família e tantos amigos queridos para comemorar mais um aniversário, foi que pude perceber o que sou, de fato, da linhagem daquela senhora, que tanto amava reunir a família, que tanto amava celebrar a vida. Pude me dar conta do quanto sua vida de dedicação e amor a todos nós nos preparou para continuar a caminhada, mesmo sem ter ela junto de nós, fisicamente. Seu amor pela vida preparou-nos, inspira-nos a seguir vivendo. Com saudade, mas tristeza. Assim, quando hoje nos reunimos em festa, ainda paira no ar a mesma sensação de completude, de felicidade plena, que sempre nos renovou, nos deu viço, força, para seguir em frente. E é essa alegria de estarmos juntos, essa vontade tamanha de sempre celebrar a vida, que nos sustenta e traz de volta a sua presença. Ela vive entre nós, novamente. É mesmo impossível não se deixar contagiar pela lembrança de sua alegria, não enxergar seu sorriso carinhoso, não sentir seu amor em meio a nós. Talvez tenha sido por isso que meu sobrinho, tão sensível como é, tenha se emocionado, quando nos despedíamos. “Por que você está chorando, meu filho?”, eu o perguntei, “Deu saudade da vovó, tio. Muita saudade!”. É como nos velhos tempos.


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sexta-feira, 20 de julho de 2012

Bolo de Aniversário

No meu tempo de menino, em dias de aniversário, eu geralmente acordava cedo e já subia pra casa de minha avó. Quase sempre, eu a encontrava por detrás da mesa, que ficava na área de serviço, em meio a cascas de ovos, farinha de trigo espalhada, açúcar, pó Royal. Logo que eu aparecia, ainda com cara de sono, ela já abria aquele sorriso. Ela tinha um jeito de sorrir com os olhos, que encantava e aquecia o coração da gente. Ela largava tudo, limpava a mão no avental e vinha me beijar, abraçar, desejar coisas boas. Abençoar. Era o melhor abraço do dia. Então ela chamava o vovô, que saía lá de dentro da casa, e, também sempre tão carinhoso, vinha com aquela alegria, dar um abraço apertado, e aqueles muitos beijinhos que ele até hoje tem mania de dar. Eu, então, me colocava ao lado de minha avó, e ficava ali, observando. De olho na colher de pau e na bacia, cheias de massa crua, que ela me dava pra raspar e comer no final.

A receita estava na cabeça, nenhum papel, nada por escrito. Ela adicionava cada um dos ingredientes sempre na mesma ordem. Peneirava a farinha de trigo, separando os carocinhos que sempre sobravam ao final. Fazia aquele montinho de farinha de trigo no meio da bacia. E, depois, ia quebrando cada um dos ovos separadamente em outra bacia. “Um ovo estragado, pode botar tudo a perder”. Por fim, ela sempre testava o pó Royal, com um pouquinho de água. Se fizesse bolhinhas, estava bom. “Se o fermento não fervilha, o bolo não cresce”. Batendo sempre pro mesmo lado, sem parar, para o bolo não solar. Depois era só untar o tabuleiro, jogar a massa e levar ao forno para assar. De vez em quando, ela ia com um palito de fósforo e furava o bolo pra ver se já estava no ponto. Eu nunca estendia o porquê disso. Hoje, faço a mesma coisa. Depois dos bolos assados, era hora de confeitá-los com glacê e frutas. Aquele cacho de uvas bem grande no meio, meias-luas de maçãs e conchinhas de pêssegos em caldas e ameixas secas, imitando flores, coloriam a superfície do bolo. Mais tarde, era só enfeitar a mesa com refrigerantes encapados e docinhos, e cantar parabéns. Festejar. Pois era isso que a fazia mais feliz. Celebrar a vida, em meio à família. Casa cheia. Alegria transbordando.

O tempo foi passando, eu já não era mais tão criança, mas ainda guardava o costume de, no dia do meu aniversário, subir logo pela manhã para pedir-lhe a benção. O beijo, o carinho, o abraço apertado, continuavam tão bons quanto antes. O sorriso ainda mais carinhoso e encantador. E, mesmo depois de tantos anos, ainda a encontrava peneirando a farinha de trigo, medindo as xícaras de açúcar, entre cascas de ovos quebradas sobre a mesa, testando o fermento em pó. O bolo podia até não ser mais confeitado com glacê e frutas, mas sempre presente, era coberto do carinho e do amor, que só as avós conseguem nutrir pela gente. Para ela, sempre foi assim, dia de aniversário era pra ser comemorado. Não podia passar em branco de jeito nenhum. Ainda que fosse apenas com um bolinho pra tomar café. Mesmo nos momentos mais difíceis, quando ela poderia ter todas as justificativas para não festejar, ela festejava.

Ali, à beira da mesa enfarinhada, na barra do vestido de minha avó, eu ia crescendo e aprendendo seu modo de vida. Enquanto ela misturava ingredientes com tanto cuidado, cada um ao seu tempo, eu ia aprendendo que a vida é essa arte da mistura, em que cada ingrediente tem a sua importância na massa, e que é preciso saber dosá-los e acrescentá-los no momento mais conveniente. Entendia também que muitas vezes é preciso quebrar a casca para saber o que cada um tem por dentro, pois uma casca perfeita pode ocultar um interior estragado, apodrecido, que acrescido à massa pode comprometer o gosto doce do bolo. É preciso zelar, prevenir, proteger, para evitar adição daquilo que dentro de si não tenha nada de bom a oferecer à mistura. Compreendia que há coisas na vida que não precisam estar presentes em grande quantidade, mas é essencial que tenham a qualidade de nos fazer crescer. Aprendia que mesmo em momentos nem tão alegres, era preciso celebrar a vida. Vovó era incansável nesta arte de conviver com a alegria e a dor, sem deixar que uma se sobrepusesse à outra. A cada uma delas, ela dava o devido lugar e o respeito necessários. Tudo ao seu tempo. Sabia também de cor essa receita para a vida, ir adicionando tudo que a vida tem a nos oferecer, peneirando, eliminado as pedras do caminho, descartando o podre, o prejudicial. Dando o tempo necessário pra fazer a massa crescer, se transformar em algo leve, doce, mais fácil de digerir. Naquela casa, nunca nos fora negado o direito de conviver com a dualidade, tão presente no dia a dia, com a alegria e dor, com o nascimento e com a morte, com o riso e com o pranto. Por que tudo faz parte da vida. Tudo é importante na massa.

Mesmo depois de adulto, morando mais distante, sempre guardei o costume de passar o dia do meu aniversário na casa de minha avó. No sobrado de minha infância. O que me alegrava era passar aquele dia de forma simples, almoçar com a família, a tardinha comer aquele bolinho comum com café. Receber o carinho e abraço terno de minha avó. Numa dessas coincidências da vida, foi numa véspera de aniversário que eu tive de me despedir daquela senhora que tanto me ensinou sobre a arte do bem viver. De certa forma, aquele momento selaria para sempre a nossa relação tão especial. Um ciclo perfeito se completava. Naquele dia seguinte, eu acordei cedo, subi as escadas. Ela não estava mais por detrás da mesa. Não havia mais a mesa enfarinhada, as cascas de ovos espalhadas, o fermento. Não houve o sorriso encantador. Não houve o abraço. O sobrado estava vazio. Pela primeira vez eu tive medo de ter perdido para sempre o menino que durante anos subiu aquelas escadas em busca do carinho, do sorriso, do abraço, que revigorava, que renovava forças, que aquecia a alma. Mas isso já não era possível, pois o menino que por anos observou, guardando o silêncio habitual, também já havia aprendido a receita de cor, já havia captado os ensinamentos. A própria senhora havia nos preparado para aquele momento. Sua forma plácida, serena, respeitosa de lidar com a dor, com a morte, não nos permitiu agir de maneira diferente. A saudade, a dor da perda, nunca a fez paralisar. Nunca a fez perder aquela sua alegria de viver. Sua melodia, seu canto, seu jeito de olhar a vida, ainda pairavam sobre aquele lugar. Era preciso continuar a caminhada. Assim, no silêncio daquela manhã, parado sobre o portal de entrada da casa, fechando meus olhos, eu pude ver o mesmo menino de há tempos, sentado à beira da escada se lambuzando com a massa de bolo crua, que tanto havia esperado. Foi então que meu coração, ainda que saudoso e dolorido, se aqueceu novamente. Se o menino ainda permanecia por lá, por lá também estava a senhora que sempre lhe sorriu e encantou.


Hoje, como de costume, voltei ao sobrado para celebrar mais um aniversário. Na mesma casa, com a mesma família. Vovô ainda está por lá para dar os tais beijinhos. Minha mãe, minha tia, minhas irmãs, meus sobrinhos... todos em volta da mesma mesa. A felicidade que se resume em estar ali. Juntos. Pra mim, essa sempre foi a melhor forma de celebrar meu aniversário. E, em meio à alegria da celebração, é impossível não encontrá-la em meio a nós. Remontando a cena, é impossível não vê-la entrando e saindo daquela cozinha, preocupada se todos já tinham sido servidos. Com uma felicidade que saltava aos olhos. Porque se a família está reunida, se tem festa, se a gente é feliz assim, ela está por perto. Em nossos corações, uma vez aquecidos pelo seu amor, ela vive para sempre. Eu sinto isso.

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quinta-feira, 12 de julho de 2012

A pele que habito

Assisti em DVD há poucos dias ao último filme do Almodóvar, “A pele que habito”. Não pretendo fazer aqui nenhum tipo de crítica ao filme, pois estou longe de ter este talento, ou olhar. Gostei bastante do filme, pelo impacto que me causou. Gosto disso na arte em geral, de me sentir provocado. E, no caso deste filme, as provocações e sensações são variadas. No entanto, independente do que senti ao ver o filme, o melhor pra mim foi a metáfora, a mensagem subliminar, que ficou rondando minha mente após o término do mesmo. Apenas um dos inúmeros olhares possíveis. Bem particular, obviamente.

O motivo principal do filme é a relação que se estabeleceu entre um cirurgião plástico – personagem de Antonio Banderas – e sua paciente, a qual ele mantém trancafiada e monitorada por câmeras de vídeo em uma determinada área de sua casa. Além das visitas diárias do próprio cirurgião, nenhum outro tipo de contato com o mundo externo é permitido à tal paciente, a não ser a comunicação através de um interfone com uma espécie de governanta da casa. Depois de algum tempo, o médico se percebe completamente envolvido por sua paciente-prisioneira e, mesmo depois de tantas atrocidades cometidas, tem-se início uma suposta relação afetiva entre os dois. Então, ele se vê obrigado a ceder e permite a ela uma liberdade um pouco maior. No entanto, a esta altura do filme, fica difícil imaginar que eles conseguiriam levar uma vida normal, que seguiriam imunes àquela sucessão de erros, e que seriam felizes para sempre. De fato, não conseguiram.

Fiquei pensando no quanto aquele tipo de relação de domínio, de aprisionamento, de sequestro é mais comum no nosso dia a dia do que possamos supor. Pelo menos do ponto de vista metafórico, é claro. Quem de nós não poderia citar uma relação de sequestro psicológico, emocional? Relação em que uma pessoa, mesmo não estando presa fisicamente, vê-se completamente dominada por outra. Como se sua alma tivesse sido furtada, raptada. Ainda que não sejam sentidos literalmente na pele, os danos causados por uma relação como esta podem ser tão dolorosos e definitivos quanto aqueles sofridos pela personagem do filme. Danos estes que dificilmente se apagam, deixando marcas e trazendo consequências tais, que podem determinar para sempre as escolhas, os rumos a serem seguidos na vida de uma pessoa.

Este tipo de relacionamento parece seguir um velho e conhecido roteiro, percebido por muitos que estão de fora e, na maioria das vezes, ignorado pela vítima do dito sequestro emocional. Inicialmente, a pessoa se deixa entorpecer por algum motivo qualquer, seja ele, carência, paixão desenfreada, autoafirmação, ingenuidade, imaturidade, chantagem emocional, ou seja lá o que for, e mesmo que inconscientemente se deixa aprisionar pelo raptor de sua alma, que sutilmente a afasta do convívio social, do contato com amigos, familiares, e, por mais esdrúxulo que seja, consegue mantê-la distante até mesmo de pessoas muito próximas, como pai, mãe, irmãos, filhos. Por mais óbvio que pareça à grande maioria das pessoas à sua volta, a vítima do sequestro de alma dificilmente consegue enxergar a cilada em que se envolveu e, geralmente, quando se dá conta, ainda que relute, não tem energia suficiente para escapar daquela situação. Com o passar do tempo, quando parece não restar alternativa, acostuma-se. Muitas vezes – assim como num sequestro real – é comum que se estabeleça uma relação de dependência entre a vítima e o sequestrador, que pode até ser absurdamente classificada, por eles, como amor.

No entanto, uma relação amorosa que aprisiona é em sua gênese uma incoerência, uma mentira patética. Afinal o amor é essencialmente libertador. Não se pode imaginar que é possível amar alguém, impondo-lhe castrações, limitando seu crescimento intelectual, impendido que o outro desenvolva suas próprias impressões e opiniões a respeito da vida, afastando o outro do convívio social ou familiar. Enfim, fazendo-lhe refém de seus caprichos e acorrentando sua alma. Quem age assim, ilude-se a respeito do amor. Engana-se profundamente. É como um criador de aves, que prende um pássaro em uma gaiola, e regojiza-se com seu canto, sem se importar se é de alegria ou de tristeza a canção que ele ouve todas as manhãs. A verdade é que, por mais que se trate com cuidado um passarinho preso numa gaiola, dando-lhe a melhor ração, água fresca, as melhores condições de limpeza, por mais que se julgue tratá-lo com carinho, afeto, dedicação, o passarinho nunca perderá uma oportunidade de escapar. Pois o simples fato de tê-lo aprisionado já gerou desde o princípio uma relação desigual, de domínio, regida pelo medo, pela falta de confiança. E onde não há confiança, não é possível haver cumplicidade, não se cria o respeito, base imprescindível ao amor. Assim como o passarinho preso em uma gaiola, a pessoa que de alguma maneira tem sua liberdade cerceada, por mais que não demonstre, não cultiva outro pensamento senão o de se livrar das amarras e se tornar livre novamente. Assim, quando efetivamente enxergar uma possibilidade real de fuga, ela se arrisca, ganha mundo. Vai-se embora. Se não vai, é porque esqueceu que sabe voar. E se chegou a este o ponto, perdeu a essência. Não é mais pássaro, não é mais gente. E o que viveu nunca foi nem nunca será amor.


Amor é o que cultiva o jardineiro, que pacientemente cuida de seu jardim, e fica à espera dos beija-flores, que seduzidos pela beleza de suas flores, vêm em busca da doçura do néctar, e em troca oferece a ele a elegância e o encanto de seu balé flutuante. Amor é essa relação de doação, de troca, de entrega mútua. E, para que seja assim, não basta apenas ofertar o néctar, o mel, pois beija-flor preso em gaiola não baila, não voa. Morre à mingua. Para se apreciar a leveza de sua dança, é imprescindível deixá-lo livre. Quem corta asas, quem impede o vôo, definitivamente não ama. Apenas tenta satisfazer seus desejos egoístas e unilaterais. Não quer se submeter a riscos. Dá o mínimo e, no entanto, se acha no direito de usurpar o que o outro tem de melhor. Mas o amor não se dobra a caprichos e imposições. O amor é a escolha de ficar diante das inúmeras possibilidades de ir. O amor deseja fluir, para tanto necessita de espaço. Tem urgência de liberdade. Não sobrevive em gaiolas. Por isso, quem impõe barreiras, grades, ainda que emocionais, não ama. Engana-se. Mente para si mesmo. Vive sozinho, mesmo estando junto. Raptor de almas alheias, vê-se dominador, mas é dominado. Pensa-se livre, mas é cativo do medo de perder. Refém da angústia de ver sua vítima escapar. E, ela há de escapar. Mais cedo ou mais tarde. De um jeito ou de outro. Pois, não se aprisiona uma alma por toda a vida. Sua essência clama por liberdade. Não suporta o domínio de uma prisão imposta. Deseja ardentemente ser feliz. Quer reencontrar-se. E, ainda que habite outra pele, ainda que tenha de conviver com marcas indeléveis, toda alma guarda em si uma sede de amor. Essa força motriz que nos impulsiona e dá sentido à vida. Por isso, viva e deixe viver!

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terça-feira, 10 de julho de 2012

Querido, com a língua não?!


Doralice e Neves estavam casados há quase dez anos. Ele, professor universitário, doutor em Linguística. Ela, revisora de textos na redação de um importante jornal. Tinham um relacionamento daqueles que beiram a perfeição. Invejável. Gostavam muito de viajar, conhecer novos lugares, novas culturas. Frequentavam bons restaurantes. Adoravam música, cinema, teatro. Devoravam livros e mais livros. Assunto era o que não faltava para eles. No entanto, há tempos o sexo vivia naquela pasmaceira. Não era de hoje que precisavam dar uma apimentada nesse quesito.
— Ai Neves, meu amor. Eu não vou conseguir.
— Vai sim, Dorinha. Não custa nada tentar, vai?!
— Pra você é tudo muito simples. Mas isso vai de encontro a tudo aquilo que prego diariamente. Fere profundamente os meus princípios. Brincadeiras com a língua, eu não admito.
— Poxa, querida, entre quatro paredes, vale tudo!
Apesar da insistência de Neves, Doralice mais uma vez colocou mil obstáculos e não conseguiu realizar suas ideias sexuais mais recentes.
No dia seguinte, durante a sessão da terapia, a revisora comentou com a sua analista:
— Agora mais essa, Doutora. O Neves cismou com essa história. Insiste o tempo todo nessa maluquice.
— Relaxa, Doralice. Essa necessidade de associar dor e prazer é muito comum entre os casais. Tente trazer isso de forma benéfica ao seu relacionamento.
Doralice pensou no assunto o dia inteiro. Durante o almoço, decidiu comentar com Marluce, sua melhor amiga, que, como de costume, foi muito prática e objetiva:
— Ô Dora, pelo amor de Deus, né? Faz logo isso, criatura. Porque se você não faz, vem outra e faz. Aí, eu quero ver!
— Será, amiga? Será que ele é capaz de me trair por causa disso?
— Vai pagar pra ver? Vai?
A ideia ficou rondando sua cabeça o dia inteiro. Para ela, não era realmente simples. Não se imaginava naquela situação. Porém, não via muita saída. Precisava testar. Agradar o maridão.
— Alô, querido. Sou eu, Dorinha. Já está em casa? Então se prepara que hoje vai rolar.
—Hmmm. Pode deixar comigo. Você não vai se arrepender, meu amor.
Doralice chegou em casa, tomou um banho bem refrescante. Passou um óleo perfumado pelo corpo inteiro e vestiu uma camisola de seda, bem sensual. Foi para o quarto e encontrou com o Neves, que já estava deitado, esperando. Ela amarrou as mãos do marido na cabeceira da cama com lenços e ameaçou:
— É dor o que você quer sentir, meu amor? Não é?
— É sim, minha delicinha. Acaba comigo, vai?
A mulher ficou em pé sobre a cama, por cima das pernas do Neves, e quando começou a baixar a alça da camisola, falou:
— Então fica quietinho pra mim começar a tortura!
Quando o Neves percebeu o que sua mulher era capaz de fazer, ficou imediatamente excitado. A Doralice foi perdendo a vergonha, ficando cada vez mais ousada, voluptuosa, a ponto de ser capaz de gritar em seu ouvido:
— “Mendingo”, “mortandela”, “salchicha”, “rezistro”!
— Isso meu amor, assim você me enlouquece — dizia o Neves, enquanto se contorcia todo sobre o colchão.
A cada erro de concordância nominal, ou de regência verbal, ou de emprego de pronome, que sua mulher cometia ao seu ouvido, ele entrava em êxtase. Mal sabia ele que o pior – ou o melhor, quem sabe? – ainda estava por vir.
Doralice, já completamente nua, se debruçou sobre o corpo do marido e mandou o golpe mais poderoso, a tacada fatal, sussurrando ao pé do ouvido do Neves:
— Tá gostando, meu amor, ou prefere que eu “seje menas” violenta?
Ao ouvir isso, o Neves não se conteve de tanto prazer, puxou os braços com toda força, arrebentou os lenços que o prendiam à cama, e foi pra cima da Doralice com um furor sem precedentes.
Naquela noite, os dois se amaram como nunca. E a Doralice só se arrependeu de não ter cedido às loucuras do marido há mais tempo. Santa língua portuguesa!

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domingo, 8 de julho de 2012

Norminha, curta e grossa!


Norminha quase não frequentou a escola. Aprendeu a ler e a escrever na marra, anotando os recadinhos ao telefone, lendo os bilhetes deixados pelas patroas na porta da geladeira.
— Ô Dona Ester, esses menino vão acabar quebrando o vaso de pranta. Eu já mandei parar com essa bola, esses menino!
— Tá bom, Norminha, tá bom. A gente para. Mas não é pranta, é planta!
— Eu tô falando é pro bem de vocês mermo. Daqui um pouco, Dona Ester desce e planta a mão em vocês tudo. Falei certo, Dudu?
Era assim que ela ia aprendendo a falar seu português todo peculiar. Prestava atenção em tudo. Admirava a patroa conversando ao telefone. Ficava repetindo algumas palavras, muitas vezes, sem nem saber ao certo o que significavam. Apegava-se às palavras pelo som que elas produziam, pelo prazer que dava em dizê-las. Pelo gosto. Pelo tato.
— Então, Dona Ester. Hoje mermo, quando eu tavo soltando do ônibus, vim pensando no que a senhora falou comigo ontem.
— Saltando, Norminha. Você estava saltando do ônibus.
— Que saltando que nada, Dona Ester. A senhora pode até saltar do taxi, do seu carro. Mas de ônibus lotado, de trem abarrotado, a gente tá tão agarrado, que tem é que soltar mermo. Cadiquê se for tentar saltar, Dona Ester, chega é todo dia atrasada no serviço.
A patroa sorriu e foi obrigada a concordar.
— Você tem toda razão, Norminha.
— Sempre tive que aprender tudo sozinha nessa vida. Ninguém nunca me deu nada de mão beijada. Aí vem esses pessoal com história de regra pra cima de mim?! Na minha gramática, quem manda sou eu.
Norminha decidia se uma palavra estava certa ou errada, baseando-se nas sensações que tinha quando falava, ou nas experiências da vida. Quando encasquetava com alguma palavra, ninguém a fazia falar diferente.
— Pois então, Dona Ester, num fica tão preocupada. Essa história do Seu Nestor vai se resolver. É coisa permanente. Derrepentemente, passa!
Pra ela, permanente era passageiro. Coisa que uma hora acaba. Do mesmo jeito que acabava o efeito do permanente no cabelo da sua antiga patroa. Essa até D. Ester já sabia.
— Pois é, Norminha, é como você sempre me diz: “Encrespou, Dona Ester? Fica fria que é permanente. Logo, logo fica liso de novo!”. Ai, Norminha, só você mesmo pra me fazer rir.
— É isso ai, Dona Ester. Bola pra frente. A senhora num sabe o que é pobrema não. Pobrema é coisa de pobre. Feito praga, prego, pedreira... O que a senhora tem, Dona Ester, é poblema. E poblema é coisa simples, plana, leve feito pluma, que o vento leva e acaba num instante.
Norminha tinha uma alegria de viver que contagiava a todos. Nada a tirava do sério. E assim seguia seu caminho, “blindando” à vida, mesmo que ás vezes ela estivesse meio “compricada” . 


O desafio dos 5 dias...







quarta-feira, 4 de julho de 2012

Doce de mamão verde

Eles geralmente vinham embrulhados em papel de pão ou jornal. Ela os trazia quando retornava de alguma viagem curta à casa de amigos ou parentes. Aquela gente que morava na roça, que eles tinham o costume de visitar de vez em quando. Na maioria das vezes, ela tirava os mamões verdes da sacola e os colocava pra madurar na fruteira que havia no corredor. No silêncio da noite, os frutos sutilmente envelheciam. Entregavam-se silentes à inexorável ação do tempo. O verde ia se despedindo lentamente, dando vez a um amarelo cada dia mais forte e vigoroso. A dureza e o amargor rendiam-se à maciez e a doçura do fruto maduro. Era o tempo a conduzir, discreto, o milagre do amadurecimento. Passavam-se alguns dias, e ela, intuindo o desejo do fruto em se tornar alimento, separava um dos mais avermelhados, e colocava sobre a mesa para o café da manhã. Cortava então o mamão, de fora a fora, expondo aos nossos olhos atentos a beleza da fruta que se deixou transformar. Encaixando uma de suas metades na palma da mão, ela raspava o mamão com uma colher pequena, retirando-lhe as sementes, e o colocava sobre o prato do vovô, enquanto exaltava os benefícios da fruta no auxílio à boa digestão. Eu, que até então não tinha olhos de ciência, nada sabia a respeito da química, de enzimas e metabolismos, deixava-me levar apenas pelo encanto das incontáveis bolotinhas que feito bilhas rolavam pela mesa. Em silêncio, eu me divertia, tentando adivinhar qual delas alcançaria lugar mais distante sobre a mesa.

Se as frutas trazidas da roça não tivessem como destino a fruteira, era certo que no dia seguinte haveria doce de mamão verde. Neste caso, o ritual era outro. Era preciso vencer o quanto antes a avidez da fruta em se tornar madura. Não se podia esperar. Então, assim que chegava de viagem, ela já pegava os mamões ainda bem verdinhos e, com uma faquinha de ponta fina, riscava a casca de todos eles e os deixava descansando por algumas horas. Dizia ser necessário cortar a pele para deixar escorrer o amargor. Passado o tempo necessário, ela cortava os mamões verdes ao meio, retirava as sementes esbranquiçadas, e passava todos eles, com casca e tudo, num ralador bem velhinho, que ela guardava com todo cuidado, pois era o único que ralava os mamões da maneira que ela aprovava. O ralador, em verdade, não passava de uma lata de marmelada toda furada com prego e martelo, que havia sido presente de uma cunhada, que morava em Paty do Alferes, de onde geralmente vinham os mamões verdes. Geralmente, preenchia-se uma bacia bem grande com aqueles fragmentos de mamão ralado, que compunham um emaranhado de fiapos da fruta, que variavam seus tons desde o mais claro ao mais intenso dos verdes, que nem de longe lembravam o avermelhado do fruto maduro. Ela, então, cobria o mamão ralado com água e o deixava de molho durante a noite inteira. Na manhã seguinte, ainda bem cedo, lá estava ela à beira do fogão, a mexer o tacho com o açúcar e os fiapos da fruta, enquanto o vapor que ascendia, perfumava o sobrado com aquele cheirinho de doce de mamão verde e com nuances de cravo e canela. Naquele tempo, eu nem apreciava tanto assim o sabor do doce de mamão verde, mas gostava de saber que, mais tarde, estaríamos reunidos à mesa, enquanto ela carinhosamente ia servindo cada um de nós com um pouquinho daquele doce, que mais parecia um cristal de tão brilhoso e transparente.

Voltando pra casa, há alguns dias, lembrei-me do tal doce de mamão verde de minha avó. Entrei no supermercado e comprei alguns mamões bem verdinhos. Risquei-os da mesma forma que ela fazia. Deixei descansado. Mais tarde, enquanto eu ralava os pedaços do mamão, fiquei pensado no quanto aquele procedimento todo, o passo a passo daquela receita, trazia, de certo modo, ensinamentos simples para uma vida inteira. Minha avó, ao voltar de viagem com aqueles mamões verdes, já devia vir pensando, decidindo, o que fazer com eles. A escolha, por si só, já pressupunha caminhos diferentes, estratégias distintas a serem tomadas. Em alguns momentos, ela bem sabia, bastava apenas deixar o tempo agir. Quando não se pode fazer nada, além disso, é preciso tão somente ter paciência e saber esperar. Só mesmo o amadurecimento para imprimir essa sabedoria capaz de nos fazer compreender que, com o passar do tempo, mesmo a amargura e a dureza da vida podem se transformar em maciez e doçura. Por outro lado, em outras situações, a vida demanda atitudes mais rápidas e precisas. Não é possível se dar ao luxo de ver o tempo passar. Às vezes, o amargo tem mesmo é que sair na marra. Nem que pra isso seja necessário ferir, cortar a pele, para evitar que mais adiante tenha que se provar um dissabor maior. A sabedoria pode estar também na decisão de não esperar, de agir o quanto antes. Em certos momentos, é preciso saber tirar proveito das fases nem tão doces da vida. Levá-las ao fogo transformador. Fazer com que ganhem brilho e transparência. Para cada objetivo, sempre há uma atitude mais adequada a ser tomada. Ela, daquele seu jeito sereno, sempre escolhia a maneira mais sábia de lidar, seja com os mamões verdes ou com as questões mais complicadas da vida. De mamão maduro não se faz doce, ela dizia. Naquele dia, enquanto eu esperava o doce pegar o ponto, olhando minhas mãos a conduzir aquela colher de pau, eu pude perceber o quanto de minha avó ficou em mim, no meu modo de encarar a vida. Na maneira paciente e parcimoniosa em que tento fazer minhas escolhas, em que traço minhas estratégias. Naquele tempo, enquanto eu corria pelos corredores daquele sobrado, alheio às mudanças que o tempo impunha não só aos mamões esquecidos na fruteira, mas a todos nós, eu nem me dava conta disso, mas as lições de vida daquela senhora já me invadiam a alma, da mesma forma que o cheirinho do doce de mamão verde, que hoje novamente se espalhou por minha casa, fazendo-me sentir a mesma paz que sinto desde outrora.

domingo, 1 de julho de 2012

Deixa eu te amostrar!

Acabara de concluir seu cursinho de português avançado. Gabava-se o tempo todo por falar corretamente. Sabia aplicar como ninguém as novas regras de hifenização. Nunca flexionava erroneamente o verbo haver no sentido de existir. Sempre aplicava corretamente as expressões “ir ao encontro de” e “ir de encontro a”. Escrevia “embaixo” junto e “em cima” separado. Estava enfim preparado!
Naquele dia, tão logo saiu de casa, foi abordado por um vendedor de facas, tesouras, canivetes, cortadores de unhas e outras quinquilharias.
— E aí, gringão! Num tá afim de comprar uma tesourinha, uma parada pra cortar as unha, não? Dá um help aí pro teu camarada, pra mim sustentar os menino.
— Desculpe-me, senhor. (Nunca usava próclise no começo de frases). Estou às pressas. Indo ao cinema com o intuito de assistir a um filme.
O vendedor saiu andando atrás dele e, com uma tesoura na mão, insistia:
— Tá bom. Só vou te amostrar, então!
Quando o vendedor falou isso, o gringo saiu em disparada.
                — Tirar-me uma amostra?! Meu Deus, como assim?
O vendedor, sem entender nada, foi correndo atrás, com facas e tesouras na mão, gritando:
— Para, sangue bom. Só quero te amostrar!
Correndo ainda mais desesperado, esquivando-se por entre as pessoas que circulavam pela rua, o gringo escorregou, caiu e bateu com a cabeça no chão.
Quando abriu os olhos novamente, ainda meio tonto, percebeu que estava deitado numa cama de hospital. Sim, provavelmente estavam ali o médico e a enfermeira. Teve vontade de correr novamente, mas mal conseguia se mexer.
— Então, como estamos? Tudo em paz?
Perguntou-lhe o médico. E, logo em seguida, sorriu-lhe a enfermeira:
— Consegue me ver? Quantos dedos tem aqui?
Desejou sumir dali. Não teve coragem de responder nada. Certamente, o que ele temia já havia acontecido. Mas não sentia nenhuma dor. Como isso era possível? Deveria estar ainda sob os efeitos da anestesia, pensou. Permaneceu calado. Com os olhos vidrados. Respiração ofegante. Muito inquieto. Começou a se debater descontroladamente, quando imaginou o que poderia ter-lhe sido extirpado.
— Doutor, os batimentos?! Estão muito acelerados. A pressão está subindo demais.
— Depressa, enfermeira. Sedativo na veia.
O gringo rapidamente se acalmou e voltou a dormir.
Mais tarde, quando acordou e deu de cara com o tal vendedor, não suportou. Arrancou soro, fios, sensores e saiu gritando pelos corredores do hospital.
Oh my God. Help! Socorro! Este louco novamente atrás de mim, ameaçando me amostrar, me arrancar um pedaço?! De novo não, please. Me tira daqui.
De tão nervoso, não conseguia pensar em próclise, mesóclise, ênclise, nada disso. Só parou depois de ter sido amarrado numa camisa de forças.
O gringo nunca mais foi o mesmo. A cada dia, cisma que alguém o persegue, pedindo-lhe uma amostra do seu corpo, querendo arrancar-lhe alguma parte. Nunca tem coragem de apalpar a tal parte imaginada.
Não conseguiu conviver com a dúvida. Passa os dias, pra lá e pra cá, pelos corredores do hospício, correndo atrás das enfermeiras, cantarolando coisas do tipo:
— Antes de “p” e “b” só se usa “m”. “Quem vai a e volta da, crase há. Quem vai a e volta de, crase para quê?”. “A, ante, perante, após, até, com, contra, de, desde, em, entre, para, por, sem, sob, sobre, trás...”
Enlouqueceu pela obsessão em falar corretamente a língua portuguesa.
Já o pobre do vendedor teve de dar boas explicações na delegacia. Acabou aprendendo na marra a diferença entre amostrar e mostrar. Hoje, para não criar maiores confusões, evita regionalismos. Opta, atualmente, por sempre fazer uso da norma culta.

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segunda-feira, 25 de junho de 2012

Precisamos de um mundo mais estranho!

Il postino, Itália, 1994
Uma das melhores cenas do filme “O carteiro e o poeta”, para mim, é a que o poeta Pablo Neruda, conversando com seu carteiro, de frente para o mar, declama um poema que fala do próprio mar. O carteiro ouve o poema atentamente e quando o poeta lhe pergunta o que ele havia achado, ele responde: “estranho”. O carteiro então explica que havia achado estranho não o poema, mas a sensação, pois conforme o poeta recitava a poesia, ele sentia-se como que enjoado, mareado, como se ele mesmo fosse um barco navegando sobre aquelas palavras, que também iam num vai-e-vem, feito ondas no mar. O poeta então alerta para o fato de o carteiro ter acabado de fazer uma metáfora. Metáfora, palavra que há poucos instantes o pobre carteiro sequer havia ouvido falar.


A poesia é então esta metáfora que nos transporta para esse universo estranho que se encontra escondido nas entrelinhas das palavras propostas pelo poeta. A poesia, como de fato será vivenciada pelo leitor, não está ali escrita, não existe. Em verdade, ela nasce no exato momento em que o leitor a lê e se deixa levar, se deixa embriagar, entorpecer por aquelas palavras. Um poema é por assim dizer um sem fim de possibilidades, pois cada um de nós é único e se deixará transportar para um lugar único, particular. A poesia depende do nosso olhar. Apesar de estar formalmente fora de nós, ela nasce dentro de nós. As palavras penetram nossos olhos, nossos ouvidos, ressonam em nossas mentes, nossos corações, causando-nos certo incômodo, provocando-nos sensações estranhas, não necessariamente ruins, mas que nos fazem sentirmos vivos, pois acessam nossa alma. E é nesse exato instante que a poesia nasce dentro de nós. Nesse momento, já não somos mais o leitor e o poeta, somos o terceiro que surge desta relação mágica. Somos um. Somos únicos. A poesia nasce desse encantamento, dessa magia, desse mistério. E viva dentro de nós, ela nos altera de alguma maneira. Transforma-nos enfim.


A essência da poesia está por aí, flutuando entre nós, feito o pólen de uma flor, que o vento leva e faz passar bem suavemente diante de nossos olhos, querendo fecundar-nos a alma. No entanto, a poesia só ganha vida quando nossos olhos captam essa sua essência. Para tanto, é imprescindível que ela nos encontre ávidos, férteis. Prontos a sermos fecundados. Disponíveis a enxergar a metáfora. Dispostos a sentir a tal estranheza. A beleza do mundo não está no mundo em si, ela nasce e vive dentro de nós. Depende do nosso olhar. Portanto, é preciso ter olhos de enxergar a essência que flutua e roga por se tornar poesia.


Existem muitas formas de encarar a vida. Ao poeta é negada a chance de escolher dentre estas muitas formas. Sua sina é ver poesia em tudo. O poeta é esse um que quer nos fazer enxergar um mundo mais belo, onde o simples, o cotidiano, o corriqueiro, e até mesmo a dor e o sofrimento, querem ser enlevados. O poeta ilumina-nos a visão e nos permite apreciar um mundo que só a sua lente é capaz de fotografar. Feito guia, ele nos conduz por este mundo de contrastes, onde a alegria e a tristeza vivem de mãos dadas, onde a morte é necessária ao sentido da vida. Assim, quando nos deixamos guiar pelas mãos do poeta, quando nos entregamos à sua forma peculiar de encarar o mundo, somos contagiados pela essência da poesia e passamos também nós a enxergar esse mundo mais belo, mesmo que árduo e cansativo em certos momentos. E, ao nos deixarmos fecundar pela poesia, somos também poetas, pois só assim a poesia perpetua-se, mantém-se viva entre nós, não se extingue. Por isso, fiquemos atentos, pois sem a poesia o mundo não se sustenta. Tenhamos então olhos de poesia. Talvez, o que estejamos precisando é justamente desse mundo mais estranho. Enfim, deixemo-nos  tomar pela sua estranheza.


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sexta-feira, 22 de junho de 2012

Rumo à Janela do Céu


Estávamos começando a percorrer uma trilha que nos conduziria à cachoeira conhecida como Janela do Céu. A caminhada seria pesada, já sabíamos. Alguns quilômetros sobre um solo pedregoso, sob um sol escaldante. Muitos obstáculos a serem superados. Altos e baixos. No entanto, íamos falando de tantas histórias vividas, observando aquela paisagem que se apresentava tão verde e vigorosa, que mesmo cansados, nunca pensamos em desistir. As nuvens naquele imenso céu azul moviam-se de tal maneira, desenhando a cada instante um novo cenário sobre nossas cabeças, que o caminho parecia-nos sempre novo. Flores se debruçavam à beira da estrada, fazendo-nos parar para apreciá-las e esquecer a árdua caminhada que ainda havia pela frente. Certamente, em algum lugar por ali, perto de nós, um rio corria alheio, discreto, e desaguava lá na tal cachoeira, e nós sequer nos dávamos conta disso.

Naquele mesmo dia, eu pensei em algo que então não conseguiria explicar, e ainda hoje talvez não o saiba efetivamente. Pensei no quanto aquela experiência, aquela caminhada, aquela dia de convivência entre amigos de longa data, era sinal, sacramento, de algo muito maior, mas que de certa forma estava presente em detalhes em cada um daqueles momentos que estávamos vivendo em apenas um dia, naquela simples caminhada. O que estou tentando dizer é que contando a história daquele único dia, eu estaria certamente falando de uma história de anos. Como se aquela trilha, aquele dia comum, fosse um uma célula, um microcosmos, um filme, uma poesia, algo que contém em si, de forma mística, mágica, religiosa talvez, uma dimensão que vai muito além de uma simples caminhada. A parte contendo o todo.

Talvez, eu me faça entender melhor, se disser que “certo dia, eu decidi trilhar um caminho que levasse a uma janela, que diziam ser a janela de onde se poderia avistar o céu. Pelo caminho, fui encontrando pessoas que seguiram comigo em busca do mesmo objetivo. No início, quando ainda tínhamos apenas a ideia, a empolgação, o sonho, a caminhada nos pareceu tranquila. A paisagem que ladeava a estrada, o sol que nos aquecia, a brisa refrescante eram de uma beleza realmente animadora. No entanto, depois de algum tempo de caminhada, o cansaço começava a nos abater, a nos subtrair as forças, e o desânimo dava o ar de sua graça. Mas cada um de nós, sentia-se responsável por não deixar o outro desistir. Queríamos encontrar a janela que dava para o céu. Respirávamos fundo. Seguíamos em frente. A estrada era sinuosa, com muitas pedras pelo caminho. Montanhas a serem transpostas. Embrenhamo-nos por caminhos escuros, tenebrosos. Mas estávamos juntos. Superamos e seguimos em frente. Em momento algum víamos o rio, mas sabíamos que ele estava por ali. Passando. Ao longe, avistávamos pessoas que também caminhavam rumo à mesma janela. Em certos momentos, tivemos dúvidas sobre que caminho seguir, em outros temíamos estar perdidos. Fazíamos as escolhas e juntos seguíamos em frente. Mesmo quando pensamos estar bem perto, duvidamos. Afinal, nunca havíamos estado ali. Não conhecíamos de fato a tal janela. Mas intuíamos sua beleza, tínhamos esperança. A fé nos guiava até ela. Finalmente, chegamos àquela janela, que se escondia por entre pedras e arbustos. No entanto, era preciso descer ainda mais fundo para irmos ao encontro da fonte de águas límpidas. Era preciso arriscar-se à beira do abismo para se chegar àquela janela que se abria ao céu. Mais uma vez, nos apoiamos. Demo-nos as mãos. E então contemplamos juntos aquela paisagem arrebatadora. E, diante de tamanha beleza, a estrada que nos levou até lá, as dificuldades do caminho, pareceu-nos muito pequenas.” Quem poderá dizer se o que relatei foi a aventura de um dia ou a história de uma vida? É justamente esta a minha tentativa de expressar o milagre daquele momento. Pois ali naquele dia, naquela caminhada, estavam os companheiros de uma vida, aqueles que trilham comigo a mesma estrada, estrada que cremos também vai dar numa janela que nos levará ao céu.

 Hoje, estou certo de que aqueles que estão ao meu lado, na trilha do parque ou na estrada da vida, não estão apenas porque eu escolhi ou fiz um convite. Nossas almas é que se encontraram, se reconheceram, se permitiram caminhar juntas. E nesse encontro de almas só há espaço para o amor e o respeito. Não há planos nem formalidades. Não espaço para mágoas, provocações e vingancinhas. Tudo precisa ser pessoal. É preciso cativar, cuidar, cultivar. Há limites a serem respeitados. Enfim, ser amigo é muito mais do que estar ao lado de alguém em uma trilha de fim de semana. Amizade é acima de tudo uma relação de confiança, de doação, de respeito. Por isso guardo com muito mais carinho as imagens, as lembranças da caminhada do que a exuberante beleza da Janela do Céu. O caminhar foi bem mais importante. Pois, ao meu lado estavam meus amigos, meus companheiros de viagem. E, junto deles, ainda que eu desanime, ainda que o caminho seja pedregoso e árduo, estou certo de que sempre hei de encontrar uma janela que me faça ver o céu.