segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

Sobre crocodilos e outros animais selvagens

Há poucos dias, assisti a um vídeo na internet por indicação de uma amiga. Um gatinho invade o espaço de um crocodilo em um jardim zoológico. O crocodilo se encontrava à beira de um lago, alimentando-se, o gato se incomodou com o fato e partiu pra cima do crocodilo, dando inúmeras patadas na cara do imenso réptil, que recuava, voltava a comer, enquanto o gato insistia em bater nele, até que, em certo momento, o crocodilo se recolheu pra debaixo d’água, desistindo da comida. As pessoas acharam incrível a coragem do gatinho, que enfrentou sem medo o crocodilo, colocando-o pra correr. Assim que vi a cena, me perguntei: quem é o verdadeiro herói desta história? Pois, na minha visão, surpreendente foi a atitude do crocodilo. O gato não passou de um inconsequente, que deu sorte de ter encontrado um crocodilo diferente, porque se o crocodilo o tivesse abocanhado, seria perdoado por todos nós, afinal de contas essa era a atitude que qualquer um esperaria do réptil irracional. No entanto, para surpresa de todos, o animal parece ter vencido seu instinto selvagem e recolheu-se ao fundo do lago. Inicialmente, pensei em escrever algo sobre esta atitude surpreendente do crocodilo, do quanto às vezes escondemos também um lado animal, instintivo e selvagem dentro de nós, que diante de certas situações, quando somos tentados a agir de forma agressiva, optamos pela não violência, até porque, diferentemente do que se espera de um crocodilo, atitudes sensatas deveriam ser comuns aos seres humanos inteligentes. Porém, acabei sendo levado à outra reflexão, quando li no jornal a história ocorrida com o jovem, Vitor Suarez Cunha, de 21 anos, morador da Ilha do Governador, aqui no Rio de Janeiro. O Vitor, assim com eu e a grande maioria das pessoas, deve ter aprendido na escola a temer crocodilos, pois como todo animal selvagem, os crocodilos agem por instinto de proteção e atacam quando se sentem ameaçados. O Vitor certamente não seria inconsequente como aquele gatinho que invadiu a jaula do crocodilo e importunou um animal sabidamente violento, implacável, escravo de seu instinto selvagem. Dentre outras coisas, o Vitor deve ter aprendido também na escola que seres humanos são animais classificados como racionais, pois são dotados de inteligência, livre arbítrio, isto é, podem optar por controlar seus instintos animais, portanto não devem agir de forma impensada. Diferentemente de crocodilos, os seres humanos, em princípio, são seres capazes de discernir, elaborar pensamentos, tomar atitudes sensatas. E, além disso, o jovem Vitor, pelo que parece, deve ter sido educado por uma mãe zelosa e preocupada em formar um cidadão solidário, preocupado com o próximo, digno e consciente de seus deveres e direitos, capaz de se indignar com a injustiça e com a maldade gratuita. Por isso, a ele pareceu muito natural, ao ver cinco rapazes tão jovens quanto ele espancando um morador de rua, reagir e tentar intervir de forma a evitar que os tais jovens ferissem o mendigo. No entanto, talvez o que Vitor não soubesse é que, assim como os crocodilos, os seres humanos podem ter atitudes também surpreendentes, inesperadas a um animal que se diz racional, atitudes completamente distintas daquelas que ele, Vitor, aprendeu que todo ser humano deveria ter. Os tais rapazes se incomodaram com o fato dele estar se metendo naquela história, derrubaram o Vítor no chão e deram inúmeros chutes em seu rosto. E só pararam porque um amigo do Vitor se jogou por cima dele na tentativa de protegê-lo e evitar uma tragédia ainda maior. O rapaz espancado teve que passar por uma cirurgia de mais de quatro horas, fraturou vários ossos da face e ainda pode ficar com sequelas em uma das vistas. Dois dos rapazes foram presos, um terceiro é considerado foragido e os outros estão sendo investigados. Quando indagado do porquê daquela atitude violenta contra o tal mendigo, um deles respondeu: “meu pai vai caminhar na praia amanhã e não iria gostar de ser incomodado por isso.” Então, eu me pergunto: que mundo é esse em que crocodilos não engolem gatos que batem na sua cara e seres humanos espancam violentamente, com o intuito de matar, mendigos ou jovens que se indignam com este tipo de violência gratuita? Como uma sociedade pode produzir jovens capazes de cometer tamanha atrocidade? Jovens de classe média alta, a princípio, estudados, que tiveram ótimas oportunidades na vida e que decidem espancar mendigos, empregadas domésticas, prostitutas, homossexuais. Que tipo de educação tiveram essas criaturas? Por que se acham no direito de resolver as coisas dessa maneira? Por outro lado, é de se surpreender também como ainda é possível educar, nesta mesma sociedade, seres humanos como o jovem Vitor, capazes de se indignar, de se incomodar a ponto de arriscar-se para defender um desconhecido, um desvalido qualquer, um mendigo. Se ainda fosse para proteger um cachorrinho peludo, fofinho, vá lá! Eu até entenderia. Mas um mendigo, Vitor? Quantos teriam esta atitude? Quem de nós não usaria a desculpa de que hoje em dia a gente não pode se meter, porque acaba sobrando pra gente? Quem de nós não seria indiferente? Afinal, mendigos fazem parte da paisagem, como postes, bancos de praça, latas de lixo. A gente logo se acostuma. A verdade é que, assim como o Vitor, não podemos ficar inertes às mazelas do mundo, temos que nos indignar com a injustiça, reagir contra a maldade. Temos que clamar por justiça. Cobrar do governo a aplicação da Lei, para evitar que pessoas como o jovem Vitor, que deveriam ser a maioria em nossa sociedade, tenham que se expor a este tipo de crime, por reagirem com indignação à violência gratuita praticada contra qualquer ser humano. Parece óbvio que qualquer animal, seja ele biologicamente classificado como racional ou irracional, que não consiga controlar seus instintos assassinos, que ataque pessoas na rua etc, deve ser preso, enjaulado. Crocodilos que matam até podem ser perdoados. Seres humanos que espancam seres humanos, não. Nada justifica. Que sejam, portanto enjaulados, como qualquer animal selvagem que invade a cidade. Ou será que já estamos vivendo numa selva e nem nos demos conta?

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

Preconceito se aprende desde criança!

Sempre questionei o fato de sendo Iemanjá uma divindade da mitologia africana, um orixá no culto de religiões originárias da África, sua imagem no imaginário popular ser a de uma mulher branca, de cabelos longos e bem lisos, a sair do mar. Iemanjá não deveria ser negra? Alguns me dirão tratar-se de questão de sincretismo, e eu ousarei discordar, porque diferentemente de outros orixás, que tem nos altares sua imagem associada aos santos católicos, essa imagem da mulher branca saindo das águas não é comum de se ver em altares das igrejas católicas.
Associei este fato a uma pesquisa feita nos Estados Unidos com crianças negras, que diante de bonecos brancos e negros, eram questionadas a respeito de coisas como quem era a mais bonita, a mais boazinha, a feia, a má. “Por que você acha essa a mais bonita?”, questionou o entrevistador, ao que a criança negra respondeu: “Porque ela é branca e tem os olhos azuis!”. É no mínimo intrigante o resultado da pesquisa. Para mim, demonstra o quanto a sociedade incute padrões na cabeça do indivíduo desde muito cedo, e como a gente é permissivo com relação a isso. Lembro-me de, quando muito menino, ter uma vizinha negra e outra loira, adorava brincar com as duas. Meus tios viviam me enchendo a paciência com aquelas coisas, fulana é sua namorada, vai casar com ela, etc. Como é nítido pra mim hoje a diferença no tom da provocação em relação a minha amiguinha negra e a minha amiguinha loira. Adultos despertando nas crianças coisas que elas mesmas nunca levam em consideração, quando na verdade deveriam ensinar desde cedo o respeito à diversidade, às diferenças.
Há alguns anos, eu assisti a um espetáculo teatral chamado Avenida Q, que é um musical da Broadway, adaptado pelos diretores brasileiros Charles Möeller e Cláudio Botelho, que tem de diferente, inicialmente, o fato de ser um musical envolvendo bonecos. O espetáculo foi fabuloso. A interpretação dos atores, a simbiose entre estes e os bonecos, que são, verdadeiramente, os atores principais do espetáculo era mesmo de impressionar. Fico aqui agora tentando me recordar de alguns momentos da peça e o que me vem à cabeça é a imagem dos bonequinhos, como se eles tivessem ali sozinhos em alguns momentos, apesar da manipulação ter sido realizada completamente às claras. Simbiose mesmo, no sentido biológico real, “relação mutuamente vantajosa entre dois ou mais organismos vivos de espécies diferentes”. Porque aqueles bonecos tinham vida! Arte pura! Com preciosismo, zelo, cuidado nos detalhes. Só vendo mesmo pra entender.
A peça tratava basicamente de relações humanas, da plurarilidade, da diversidade e, principalmente, da presença do preconceito nessas relações. E, de certa forma, da hipocrisia da sociedade que se finge de politicamente correta pra esconder as misérias humanas. A peça trata com humor extremamente sutil e inteligente a nossa capacidade de achar graça da desgraça alheia – e aqui cabe ressaltar o enorme talento dos artistas brasileiros em adaptar o estranhíssimo humor americano, ou inglês, da montagem original à nossa realidade brasileira, carioca.
É realmente uma coisa muito esquisita. Não sei se é típico do brasileiro, mas é, no mínimo, interessante essa nossa tendência a fazer piada da desgraça dos outros e até da nossa própria. É sempre muito bom, quando a gente está na merda, encontrar alguém que esteja numa merda pior ainda. Como se costuma dizer hoje em dia, ‘fulano tá todo cagado, mas continua rindo!’. Eu mesmo, quando quero acabar com a alegria dos meus alunos, que riem quando tiram notas baixas, os chamo de hienas: estão na merda, mas não param de rir. Já perceberam, por exemplo, quando morre alguém famoso, a quantidade de piadas de humor negro (uma expressão nada politicamente correta!) que surge. ‘O que é o que é? Todo enrugadinho, branquinho, de olhos azuis e mora no fundo do mar?!’ Quem é que nunca riu de piada de preto, de viado, de mongolóide, de retardado, de aleijado, de português, de loira, de gordo? Ou melhor, de afrodescendente, de homossexual, downiano, deficiente mental, deficiente fisico, pessoa de nacionalidade lusitana, mulher de cabelos tingidos, obeso, para ser politicamente correto. Que é o jeito que a sociedade, muita vezes hipócrita, acaba por utilizar, de forma a amenizar com palavras mais elegantes, o preconceito, a intolerância que, na essência, nas entrelinhas, continua presente, indepentemente de expressões linguísticas mais rebuscadas ou não.
Mas é realmente impressionante como o nosso preconceito é tão intrínseco, tão espontâneo, na maioria das vezes. Esta semana, por exemplo, vi  no youtube, um humorista negro, fazendo o povo rir com aquelas típicas piadas de negro, e uma senhora então, ele conta, no fim do espetáculo diz a ele: ‘achei muito legal essa sua capacidade de rir do próprio defeito’. Ou então aquelas frases típicas: ‘pretinho de alma branca’, ‘ele é viado, mas é legal, respeita, não fica dando em cima’, ‘é maconheiro, mas é gente boa!’, ‘fulano é negro, mas adora uma lorinha’, ‘ah, para com isso, isso é coisa de viado!’, ou ainda, ‘é preta, mas o cabelo é bom’. Ou então aquelas coisas do tipo: ‘mas ô neguinha (ou criola) abusada!’ Como se atitudes abusadas fossem mais absurdas quando feitas por negros do que por brancos.
Faz-me lembrar da história que uma colega professora me contou, dizendo que, certa vez, ela disse pra uma amiga, negra, que ela era a mulher mais bonita que ela conhecia, e a tal amiga ficou muito feliz, e surpresa ao mesmo tempo, pois na maioria das vezes, as pessoas dizem: ‘você é uma negra muito bonita’, quando na verdade, querem dizer: ‘você, apesar de ser negra, é muito bonita’. Já que ninguém diz: 'você é uma branca muito bonita'.
Bastante ilustrativo, também, naquela noite do teatro, foi quando estávamos caminhando para a sala de espetáculo, no shopping da Gávea, num hallzinho do shopping, dois rapazes sentados num sofá, um com o braço sobre o ombro do outro, com atitudes de carinho mútuo, chamavam a atenção dos passantes. Duas senhoras, distintíssimas, super bem vestidas, com cabelos super laqueados, olharam a cena, se entreolharam e disseram: ‘meu Deus, que absurdo, onde é que nós estamos!’. As distintas senhoras entraram no teatro. Fico imaginado o que elas acharam da peça, que começava justamente tratando do preconceito ao homossexual. E depois ao negro, ao estrangeiro, ao judeu, ao peludo, ao viciado em pornografia da internet, etc, etc. Talvez, quem sabe, fossem elas, as tais solteironas escrotas, pilares da sociedade, citadas na peça. Senhoras da Gávea, mas com mentalidade suburbana, como diriam os preconceituosos.
A montagem acabou por me levar a refletir quantos erros ainda cometemos quando nos prendemos a certos padrões impostos pela sociedade, muitas vezes hipócrita e ignorante, ou  pelos costumes, pela tradição, etc. Até mesmo por leis e regras rígidas e, a princípio, bastante coerentes, ditadas por pessoas inteligentes, sensatas, mas que se apegam a uma verdade – com v minúsculo – e deturpam, muitas vezes de forma brilhante e embasada, a Verdade maior e absoluta que é o Amor, que, independente, de credo religioso, cor da pele, orientação sexual etc, deveria ser a essência de cada ser humano.
O que realmente é importante numa relação humana? O que torna realmente essa relação mais duradoura? A cor da pele, a preferência sexual, a orientação religiosa ou a tolerância, a paciência, a capacidade de conviver com as diferenças ou idiossincrasias de cada um? O respeito ao próximo, talvez seja a receita. Cada um de nós é único e conviver é uma arte. Penso que o sucesso de uma relação não está vinculado com a maior ou menor quantidade de defeitos do outro, mas com o nosso talento em lidar com eles, ou seja, o exercício da compreensão. Cada vez mais, estou certo disso. O sucesso das minhas relações familiares, amorosas, de amizade etc, nunca esteve no fato de meus pares serem brancos ou pretos, gordos ou magros, heterossexuais ou homossexuais, católicos, protestantes ou espíritas, mas sim na nossa capacidade mútua de conviver com nossas manias, de compreender nossas idiossincrasias. Nunca me preocupo realmente com esses padrões. Não que eu não seja uma pessoa preconceituosa. Nós somos naturalmente assim. Mas tento não guardar esse preconceito comigo, mando pra bem longe, todos os dias, todos os momentos.
Sinceramente, penso, que ao invés de trazer informações sobre cor da pele, sexo, naturalidade, nacionalidade, etc, seria bem mais útil em nossa carteira de identidade informações do tipo: levanta a tampa do vaso pra urinar? Aperta o tubo de pasta de dentes no meio? Deixa a toalha de banho molhada em cima da cama? Come fazendo barulho? Cutuca quando fala? Ronca ao dormir? Gasta dinheiro à toa? É sovina? É preguiçoso? Irritado? É honesto? Leal? Confiável? Enfim, coisas realmente importantes na convivência humana. Porque defeitos e qualidades, integridade ou mau caratismo, dignidade ou falta de vergonha na cara, senso de justiça ou falta de escrúpulos, não são privéligio nem de pobre nem de rico, nem de preto nem de branco, de judeu ou árabe, católico ou protestante, de homem ou mulher, de bicha ou sapatão. Dependem, mais do que qualquer outra coisa, da orientação educacional, dos ensinamentos de pai e mãe, da criação familiar, do que da cor da pele ou da opção – ou, melhor, orientação – sexual de cada um. Não é o fato de termos olhos castanhos, verdes ou azuis, ou até mesmo o fato de termos a capacidade de enxergar, que nos faz ver o mundo de forma diferente, com maior ou menor clareza, mas sim os ensinamentos e experiências que acumulamos no decorrer da vida. É tão comum vermos pessoas cegas, apesar da plena capacidade física de enxergar.
O importante é a busca de um rumo na vida, como ressalta o texto da referida peça. Um ideal nobre de vida, que nos faça enxergar o que realmente importa nas pessoas. O espetáculo a que me refiro, deixou-me a imagem de que somos responsáveis uns pelos outros. E que o nosso sucesso depende do sucesso do outro, ou seja, da dedicação, do cuidado que prestamos àqueles que carregamos nos braços, nossos amigos, nossos semelhantes, nossos pares. Como o ator ou a atriz, que dão vida aos bonecos, e nos confudem a ponto de questionarmos quem conduz quem nessa empreitada. Literalmente, a arte de conviver.
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Escrevendo esse texto, na época, acabei por me lembrar de meus amigos todos, brancos, negros, morenos, mulatos, hetero, homossexuais, católicos, crentes, espíritas, ateus. Lembrei-me de uma amiga em especial, que em certa época da minha vida foi a razão da alegria de meus dias, a amiga de todas as horas, da alegria, da tristeza, da saúde, da doença. Crescemos juntos e nos tornamos seres humanos especiais juntos. Naqueles dias, ela havia acabado de dar à luz mais uma filhinha, que sendo negra, como ela e o marido, deram-lhe o nome de Maria Clara, para espanto de muitos, que acharam, no mínimo, inusitado o fato de uma menina de pele escura, chamar-se Clara. Mais um feliz e corajoso ensinamento. Pois a claridade, a transparência, a clareza de uma pessoa, não está nem no nome nem na cor da pele, mas no brilho e na Luz que emana do coração desse ser humano. E, sendo essa Maria Clara, filha dessa amiga especial, que iluminou a minha vida tantas vezes, tem tudo pra se tornar também um ser humano iluminado e que ilumina! E que assim seja.