sexta-feira, 20 de julho de 2012

Bolo de Aniversário

No meu tempo de menino, em dias de aniversário, eu geralmente acordava cedo e já subia pra casa de minha avó. Quase sempre, eu a encontrava por detrás da mesa, que ficava na área de serviço, em meio a cascas de ovos, farinha de trigo espalhada, açúcar, pó Royal. Logo que eu aparecia, ainda com cara de sono, ela já abria aquele sorriso. Ela tinha um jeito de sorrir com os olhos, que encantava e aquecia o coração da gente. Ela largava tudo, limpava a mão no avental e vinha me beijar, abraçar, desejar coisas boas. Abençoar. Era o melhor abraço do dia. Então ela chamava o vovô, que saía lá de dentro da casa, e, também sempre tão carinhoso, vinha com aquela alegria, dar um abraço apertado, e aqueles muitos beijinhos que ele até hoje tem mania de dar. Eu, então, me colocava ao lado de minha avó, e ficava ali, observando. De olho na colher de pau e na bacia, cheias de massa crua, que ela me dava pra raspar e comer no final.

A receita estava na cabeça, nenhum papel, nada por escrito. Ela adicionava cada um dos ingredientes sempre na mesma ordem. Peneirava a farinha de trigo, separando os carocinhos que sempre sobravam ao final. Fazia aquele montinho de farinha de trigo no meio da bacia. E, depois, ia quebrando cada um dos ovos separadamente em outra bacia. “Um ovo estragado, pode botar tudo a perder”. Por fim, ela sempre testava o pó Royal, com um pouquinho de água. Se fizesse bolhinhas, estava bom. “Se o fermento não fervilha, o bolo não cresce”. Batendo sempre pro mesmo lado, sem parar, para o bolo não solar. Depois era só untar o tabuleiro, jogar a massa e levar ao forno para assar. De vez em quando, ela ia com um palito de fósforo e furava o bolo pra ver se já estava no ponto. Eu nunca estendia o porquê disso. Hoje, faço a mesma coisa. Depois dos bolos assados, era hora de confeitá-los com glacê e frutas. Aquele cacho de uvas bem grande no meio, meias-luas de maçãs e conchinhas de pêssegos em caldas e ameixas secas, imitando flores, coloriam a superfície do bolo. Mais tarde, era só enfeitar a mesa com refrigerantes encapados e docinhos, e cantar parabéns. Festejar. Pois era isso que a fazia mais feliz. Celebrar a vida, em meio à família. Casa cheia. Alegria transbordando.

O tempo foi passando, eu já não era mais tão criança, mas ainda guardava o costume de, no dia do meu aniversário, subir logo pela manhã para pedir-lhe a benção. O beijo, o carinho, o abraço apertado, continuavam tão bons quanto antes. O sorriso ainda mais carinhoso e encantador. E, mesmo depois de tantos anos, ainda a encontrava peneirando a farinha de trigo, medindo as xícaras de açúcar, entre cascas de ovos quebradas sobre a mesa, testando o fermento em pó. O bolo podia até não ser mais confeitado com glacê e frutas, mas sempre presente, era coberto do carinho e do amor, que só as avós conseguem nutrir pela gente. Para ela, sempre foi assim, dia de aniversário era pra ser comemorado. Não podia passar em branco de jeito nenhum. Ainda que fosse apenas com um bolinho pra tomar café. Mesmo nos momentos mais difíceis, quando ela poderia ter todas as justificativas para não festejar, ela festejava.

Ali, à beira da mesa enfarinhada, na barra do vestido de minha avó, eu ia crescendo e aprendendo seu modo de vida. Enquanto ela misturava ingredientes com tanto cuidado, cada um ao seu tempo, eu ia aprendendo que a vida é essa arte da mistura, em que cada ingrediente tem a sua importância na massa, e que é preciso saber dosá-los e acrescentá-los no momento mais conveniente. Entendia também que muitas vezes é preciso quebrar a casca para saber o que cada um tem por dentro, pois uma casca perfeita pode ocultar um interior estragado, apodrecido, que acrescido à massa pode comprometer o gosto doce do bolo. É preciso zelar, prevenir, proteger, para evitar adição daquilo que dentro de si não tenha nada de bom a oferecer à mistura. Compreendia que há coisas na vida que não precisam estar presentes em grande quantidade, mas é essencial que tenham a qualidade de nos fazer crescer. Aprendia que mesmo em momentos nem tão alegres, era preciso celebrar a vida. Vovó era incansável nesta arte de conviver com a alegria e a dor, sem deixar que uma se sobrepusesse à outra. A cada uma delas, ela dava o devido lugar e o respeito necessários. Tudo ao seu tempo. Sabia também de cor essa receita para a vida, ir adicionando tudo que a vida tem a nos oferecer, peneirando, eliminado as pedras do caminho, descartando o podre, o prejudicial. Dando o tempo necessário pra fazer a massa crescer, se transformar em algo leve, doce, mais fácil de digerir. Naquela casa, nunca nos fora negado o direito de conviver com a dualidade, tão presente no dia a dia, com a alegria e dor, com o nascimento e com a morte, com o riso e com o pranto. Por que tudo faz parte da vida. Tudo é importante na massa.

Mesmo depois de adulto, morando mais distante, sempre guardei o costume de passar o dia do meu aniversário na casa de minha avó. No sobrado de minha infância. O que me alegrava era passar aquele dia de forma simples, almoçar com a família, a tardinha comer aquele bolinho comum com café. Receber o carinho e abraço terno de minha avó. Numa dessas coincidências da vida, foi numa véspera de aniversário que eu tive de me despedir daquela senhora que tanto me ensinou sobre a arte do bem viver. De certa forma, aquele momento selaria para sempre a nossa relação tão especial. Um ciclo perfeito se completava. Naquele dia seguinte, eu acordei cedo, subi as escadas. Ela não estava mais por detrás da mesa. Não havia mais a mesa enfarinhada, as cascas de ovos espalhadas, o fermento. Não houve o sorriso encantador. Não houve o abraço. O sobrado estava vazio. Pela primeira vez eu tive medo de ter perdido para sempre o menino que durante anos subiu aquelas escadas em busca do carinho, do sorriso, do abraço, que revigorava, que renovava forças, que aquecia a alma. Mas isso já não era possível, pois o menino que por anos observou, guardando o silêncio habitual, também já havia aprendido a receita de cor, já havia captado os ensinamentos. A própria senhora havia nos preparado para aquele momento. Sua forma plácida, serena, respeitosa de lidar com a dor, com a morte, não nos permitiu agir de maneira diferente. A saudade, a dor da perda, nunca a fez paralisar. Nunca a fez perder aquela sua alegria de viver. Sua melodia, seu canto, seu jeito de olhar a vida, ainda pairavam sobre aquele lugar. Era preciso continuar a caminhada. Assim, no silêncio daquela manhã, parado sobre o portal de entrada da casa, fechando meus olhos, eu pude ver o mesmo menino de há tempos, sentado à beira da escada se lambuzando com a massa de bolo crua, que tanto havia esperado. Foi então que meu coração, ainda que saudoso e dolorido, se aqueceu novamente. Se o menino ainda permanecia por lá, por lá também estava a senhora que sempre lhe sorriu e encantou.


Hoje, como de costume, voltei ao sobrado para celebrar mais um aniversário. Na mesma casa, com a mesma família. Vovô ainda está por lá para dar os tais beijinhos. Minha mãe, minha tia, minhas irmãs, meus sobrinhos... todos em volta da mesma mesa. A felicidade que se resume em estar ali. Juntos. Pra mim, essa sempre foi a melhor forma de celebrar meu aniversário. E, em meio à alegria da celebração, é impossível não encontrá-la em meio a nós. Remontando a cena, é impossível não vê-la entrando e saindo daquela cozinha, preocupada se todos já tinham sido servidos. Com uma felicidade que saltava aos olhos. Porque se a família está reunida, se tem festa, se a gente é feliz assim, ela está por perto. Em nossos corações, uma vez aquecidos pelo seu amor, ela vive para sempre. Eu sinto isso.

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2 comentários:

  1. Falar o que??? Mais um texto que nos leva à emoção! Parabéns! Sua amiga-leitora para sempre, Dani

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  2. Quinta, no turno da tarde, faço um trabalho do qual não gosto muito. Parei um pouquinho esse trabalho "chato" para ler seu blog, meu amigo. Que atitude acertada!
    Por alguns minutos consegui "sair da cena" que eu estava para entrar em uma outra tão mais poética e gostosa.
    Lembrei daquele final de semana em São Pedro da Serra. Tudo tão harmonioso. Apesar da apreensão com a saúde da sua avó, estávamos felizes por estarmos juntos.
    O Jorge ensinando besteiras para os seus sobrinho. O Mateus repetindo as besteiras e o Lucca com aquela cara de Dedé (rs).
    Depois o sepultamento da sua avó. Vi uma beleza encantadora naquele momento do cemitério. Tantas pessoas chorando a perda de alguém tão especial. E nós, seus amigos, ali dividindo um momento tão sagrado contigo.
    Pode parecer paradoxal ver beleza na perda, mas foi isso que vi e guardei daquele momento.

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