quarta-feira, 15 de agosto de 2012

Silêncio confortável

Por todo o período em que minha avó esteve internada, nós nos revezamos para acompanhá-la no hospital. Aquela noite seria a minha vez de servir-lhe de acompanhante. Durante a visita, a fisioterapeuta veio fazer sua avaliação e nos disse que era preciso que o acompanhante conversasse bastante com ela, pois assim a vovó exercitaria a fala. No instante em que a doutora falou isso, eu olhei pra minha avó e disse: “ihh vó, logo hoje que é a minha vez. Não foi uma boa escolha. A senhora sabe que eu quase não falo nada”. Vovó esboçou um sorriso e com imensa dificuldade balbuciou: “você sempre falou o suficiente, meu neto”. Aquelas palavras me confortaram imensamente. Minha avó me conhecia como poucos. Nunca fui o tipo de pessoa efusiva, que demonstra sentimentos com facilidade. Sempre fui, em verdade, muito ensimesmado, cerimonioso. Causam-me desconforto e estranhamento até hoje pessoas muito expansivas, exageradamente íntimas, que necessitam a todo tempo de demonstrações de afeto, de declarações, de palavras. Sempre achei isso muito cansativo. Diante de minha avó, no entanto, eu sempre pude ser o mesmo menino calado, taciturno, curto de palavras, que gostava de subir à sua casa para ficar ao seu lado, em silêncio. Às vezes à beira da cama, vendo-a dobrar roupas recém-recolhidas do varal, outras vezes, encostado na maquina de costura, brincando com botões, carretilhas e retalhos, ou ainda, sentado à mesa, enquanto ela catava o feijão ou descascava legumes. Vovó não insistia em arrancar palavras de minha boca, não me enchia de perguntas o tempo todo. O silêncio entre nós era confortável. Ela compreendia que eu gostava muito mais de ouvir do que falar. “Meu filho, você não é de falar muito. Só observa.” Eu arqueava as sobrancelhas e sorria. Em silêncio.

Essa possibilidade de estar ao lado de alguém, podendo guardar meu silêncio, sempre me agradou. Desde menino, sempre pensei demais. A mente fervilhava, elaborava, analisava tudo, o tempo todo. Falar, para mim, sempre foi custoso demais. Até hoje. Trago em mim desde sempre esse desejo de silêncio, essa necessidade de aquietar-me. Pois somente quando me calo é que ouço a voz que fala dentro de mim. A voz daquele que, mesmo sendo eu, é um outro que mora em mim, que me conhece de fato, que me compreende e me aconselha. Aquele que se alimenta do meu silêncio, da minha mudez, que toma forma e habita meus pensamentos. Esse outro que surge no exato instante em que silencio. Preciso ouvi-lo. Sinto sua falta. Conto com ele. É ele quem me dá o equilíbrio, que me ensina a calar. Esse outro eu é quem segura firme as palavras que desejam sair de minha boca, e realimenta meus pensamentos, fazendo-os girar dentro de mim, transformando-os, aparando arestas, lapidando. É ele quem grita dentro de mim, tentando me proteger dos meus rompantes. É o tal que me faz respirar fundo, engolir a seco, e começa a contar comigo: “um, dois, três...”, sempre que pressente que hei de ganhar mais permanecendo calado. É obvio que nem sempre estou plácido, sereno, o suficiente para ouvi-lo. Mas é justamente nestes momentos em que não o deixo agir é que mais me arrependo. Falar demais sempre me faz muito mal. Assim como me incomodam profundamente pessoas muito prolixas e verborrágicas. Gente redundante, palavrosa, me irrita imensamente. Gosto muito de ouvir os que respeitam as pausas, que pensam antes de falar, os que permitem intervalos. Para mim, uma relação entre duas pessoas – seja ela qual for – atinge a perfeição quando o silêncio não causa desconforto ou constrangimento. Ter com quem falar é, às vezes, imprescindível, no entanto, ter alguém que consegue se calar ao teu lado é vital. Pois é na escassez da palavra falada que os pensamentos dialogam, as almas conversam. Meus amigos mais caros são esses que compreendem o meu silêncio, que respeitam a minha mudez intermitente, o meu exílio voluntário. São os que têm permissão para entrar na minha clausura, pois são capazes de caminhar ao meu lado sem fazer barulho. São aqueles que sabem ler os silêncios da minha cadência e não atravessam o meu ritmo. Sabem fazer soar com exatidão tanto as notas como as pausas dos meus compassos. Entendem a minha música.


Vovó e eu tínhamos esse refinamento. Ela conhecia o meu silêncio. Não precisava das minhas palavras para saber o que eu estava sentindo. Eram os nossos olhos que proseavam, trocavam confidências. O silêncio não incomodava. Naquela última noite em que estivemos a sós, quando lhe faltavam forças para dizer palavras, foi com o silêncio que nos despedimos. Foi porque aprendemos a silenciar que conseguimos trocar aquelas últimas palavras, sem dizê-las. Em pé ao lado da cama, enquanto eu olhava seu rosto, eu pensava no quanto eu amava aquela senhora, no quanto sua vida, suas estórias, seus ensinamentos tinham sido determinantes na construção da pessoa que eu havia me tornado. Ela me olhava nos olhos, como se ouvisse meus pensamentos. De novo, o silêncio. De minha parte, o silêncio habitual, das horas em que meus lábios cerram de tal maneira, que as palavras parecem não encontrar meios de escapar. O silêncio que minha alma necessita pra falar dentro de mim. Dela, o silêncio resignado, da impossibilidade física de falar. Nós ficamos um bom tempo, ali, de mãos dadas, olhando nos olhos um do outro. Trocando nossas últimas confidências silenciosas. Ela, então, num esforço tamanho, levou minha mão até o seu rosto e a beijou, com carinho. Suspirou profundamente. E, então, esboçou um leve sorriso. Apesar da tristeza que insistia em meu coração, eu intuí que se tratava de um momento muito especial. Com aquele beijo, com aquele leve sorriso, minha avó me dizia pela última vez o que nunca foi preciso de palavras para dizer. Naquele instante, eu me transportei no tempo, e vi novamente o menino que corria ao terreno baldio, catava três florezinhas no mato, corria pra entrega-las, e saía às carreiras, envergonhado, tímido. Naquele tempo, ela já me sorria e consentia com os olhos. O silêncio desde então prescindia das três palavras, as mesmas que meu coração ouviu naquela noite em que nos olhamos pela última vez. Ainda hoje, é esse silêncio confortável que ameniza a minha saudade, pois quando silencio é que ainda sou capaz ouvir a sua voz doce a trazer paz e conforto ao meu coração.

Gostou do texto? Que tal compartilhar?


sexta-feira, 10 de agosto de 2012

Aplausos ao tempo!

Apesar de termos desde sempre a plena consciência de que o tempo não para, vivemos praticamente alheios a este detalhe. Ainda bem que temos esta capacidade de abstrair o tempo, pois ela é sem dúvida a forma mais inteligente de se lidar com esta verdade inexorável que é a passagem do tempo. No entanto, o tempo parece querer nos fazer percebê-lo a todo instante. Para isso, ele se utiliza de suas artimanhas e mistérios sutis. E assim a vida vai apresentando-nos provas de que não há como fugir deste senhor que, sem a menor cerimônia, fazemos questão de evitar. Naquela noite, estávamos esperando o início do novo show que a cantora faria em homenagem à sua mãe. À mesma mesa, além de um companheiro de há tempos, estavam as duas senhoras que me falavam de sua amizade de mais de cinquenta anos. Amizade que nasceu em um tempo anterior ao sucesso de cada uma daquelas canções, imortalizadas na voz da mãe, que seriam interpretadas naquela noite pela filha, também cantora. De vez em quando, eu olhava o relógio para me certificar da hora. Estávamos ansiosos e, portanto, incomodados com o atraso no começo do espetáculo. Como sempre, preocupados com o tempo.

De repente, as luzes se apagaram. Soaram os primeiros acordes. Ouviu-se, então, depois de tanto tempo, a mesma ordem para que as redes fossem jogadas ao mar. Viram-se os mesmos gestos largos e circulares anunciando uma nova pesca milagrosa. “Valha-me Deus, Nosso Senhor do Bonfim. Nunca, jamais, se viu tanto peixe assim.” Por um instante, eu tive a impressão de ter ludibriado o tempo. De repente, fui tomado por uma sensação inexplicável, como seu eu tivesse tomado posse de uma lembrança que nunca foi minha. A emoção de reviver um momento que não vivi. Um déjà vu de algo nunca visto. Era como se o tempo estivesse me dando uma segunda chance, ainda que em verdade não tenha havido a primeira. De imediato, eu enxerguei o tempo a se mostrar naquele palco. Canções que ouvia desde menino, desde o tempo em que elas me encantavam apenas pela sonoridade, pois ainda não diziam nada sobre minhas histórias, sobre minhas lembranças. Durante todo o espetáculo, eu fiquei mergulhado nesse mistério. O tempo me levando a brincar em sua ciranda, convidando-me a girar em sua brincadeira de roda. Eu não tive escolha. “Vai como a criança que não teme o tempo”, a cantora grávida nos dizia. Sim, a cantora estava grávida. O tempo mais uma vez fazendo das suas. “Eu vi a mulher preparando outra pessoa. O tempo parou pra eu olhar para aquela barriga”. Chamou-me atenção o ciclo. Fez-me lembrar da história do deus grego – Cronos – que engolia os próprios filhos com medo de que estes viessem a lhe tirar o trono e o poder. O implacável tempo a devorar tudo que ele mesmo produz. Mas a grande mãe – Reia –engana até mesmo o Tempo, afim de proteger seu filho Zeus. A luta de Cronos e Zeus, que faz o pai vomitar todos os filhos devorados, devolvendo à vida o que é imortal. “A vida é amiga da arte. É a parte que o sol me ensinou. O sol que atravessa essa estrada, que nunca passou.” A música, a arte, trazidas de volta pelo tempo a todos nós, pobres mortais daquela noite. “Nossos ídolos ainda são os mesmos. E as aparências não enganam não.” O paradoxo do tempo que não para, mas que, no entanto, parece gostar de se repetir. “Vamos dar a meia volta, volta e meia vamos dar”. Ciclo. Ciranda. E a cantora seguia a nos dizer: “É você que ama o passado e que não vê, que o novo sempre vem!”. Confundindo-nos a mente. E assim seguimos a noite, inebriados, fascinados, tontos de emoção.

Ao fim do espetáculo estávamos todos maravilhados com a beleza das canções, com a pureza e força daquela voz, com a coragem e ousadia da filha, que com personalidade e talento indiscutível mantém viva a arte e a memória da mãe. No entanto, o que aplaudimos de fato foi o espetáculo que nos proporcionou o tempo. O tempo que fez questão de assumir o papel principal naquela noite. O tempo que renova. Traz o novo de novo. O tempo que passa. O tempo que engole, rumina, metaboliza, transforma e devolve, vomita. Recicla. Aplaudimos o tempo, o senhor da razão, que cicatriza feridas, cura dores, ameniza saudades, adormece paixões. O tempo que pode tornar banal a maior das complexidades. O tempo, este senhor tão bonito, que com uma mão tanto nos tira – juventude, beleza, pele fresca –, mas que com a outra nos dá com tamanha generosidade: equilíbrio, parcimônia, sabedoria, liberdade.

Aplausos ao tempo, “compositor de destinos, tambor de todos os ritmos”, que fez surgir os cabelos brancos na fronte do artista, do poeta, que esta semana completou seus setenta anos de idade, mas que, no entanto, nunca envelhece. O tempo que também esbranquiçou os meus cabelos, que também me transformou e me conduziu ao lugar que eu tanto sonhei. O tempo que me deu histórias, memórias, amores e dores, que tingiram de nuances mais intensos e encheram de significado aquelas canções, que hoje também são minhas, porque dizem de mim. E, como propôs o mesmo poeta, meu velho tempo, também eu quero entrar num acordo contigo e, para tanto, peço-te o mesmo prazer legítimo e movimento preciso, “de modo que o meu espírito ganhe brilho definido, e eu espalhe benefícios. Tempo. Tempo. Tempo. Tempo.”




Gostou do texto? Que tal compartilhar?