Quando assisti ao filme “Ensaio sobre a cegueira” em DVD, passei por uma
experiência bastante inusitada. E que, por isso, acabou sendo marcante. Mexendo
no controle remoto para colocar legenda em português, acabei selecionando uma
opção de áudio, em que além das falas dos atores, o narrador ia descrevendo
cada uma das cenas, ou seja, narrando tudo aquilo que não era possível perceber
apenas ouvindo as falas dos personagens. O narrador descrevia coisas como: “a
mulher do médico entra no supermercado saqueado”, “muito lixo espalhado pelas
ruas”, “fez-se um grande clarão!” etc. A princípio achei aquilo muito estranho,
mas como era um filme sobre a cegueira, pensei que fazia parte do esquema,
levar o expectador a ter essa experiência. Vi o filme todo assim. De vez em
quando eu até fechava os olhos e tentava fazer o exercício de imaginar as cenas
narradas. Mais tarde, comentando com alguns amigos, eles me disseram que não
tinham visto o filme desta forma. Foi então que me dei conta de que havia
escolhido – por engano – a opção de áudio para deficientes visuais. Por
coincidência ou não, minha experiência com o filme teve esse quê a mais.
Assistir a um filme sobre a cegueira, do ponto-de-vista de um cego, acabou
sendo uma experiência interessante.
O filme por si só renderia várias
histórias e reflexões. No entanto, lembrei-me dessa situação, pois no início
desta semana, vendo o Programa do Jô, depois de ter chegado de um show da Zizi
Possi, assisti a uma entrevista de um homem cego – ele mesmo preferia ser
chamado assim, em vez de ser tratado de deficiente visual. Vejam só: o tal
homem foi chamado para ser entrevistado, por ser um dos mais assíduos
frequentadores de bibliotecas públicas em São Paulo. Ele contou sua história e
as dificuldades pelas quais havia passado durante a sua infância e
adolescência, pois na época, as escolas não tinham nenhum tipo de politica de
acessibilidade. A escola para cegos mais próxima de sua casa ficava ainda muito
distante e seria impossível para seus pais levá-lo e buscá-lo na tal escola
todos os dias. Desta forma, eles o matriculavam em escolas ditas normais e, a
seu pedido, não informavam que ele era cego. É óbvio que ele passava por poucas
e boas, até que um ou outro aluno ou professor descobria, e passava então a
ajudá-lo. Mais ainda assim ele repetia muitas vezes as séries. Quando chegou ao
ginásio, veio estudar em sua turma, um menino venezuelano, que passou a
auxiliá-lo definitivamente. E, como ele mesmo falou, seus problemas acabaram,
pois o tal amigo passou a ser os olhos dele. O tal amigo venezuelano, com o
auxílio de outros colegas, ajudavam –no nas aulas, descreviam as situações,
conduziam-no, de forma que a turma não soubesse que ele era cego. Num inicio de
ano, já no ensino médio (antigo segundo grau, e na época dele, colegial), no
primeiro dia de aula, ele – o cego – pede ao amigo venezuelano que descreva os
colegas de turma. O amigo então começa a descrever detalhadamente cada um dos
alunos, até que chega a vez de uma menina que sentava na primeira fileira. O
cego então se interessa pela descrição e acaba se apaixonando pela tal menina.
Todos os dias, ao chegar à classe, ele que já havia decorado um caminho para ir
direito ao fundo da sala para sentar próximo aos amigos, passou a desviar o
caminho para se aproximar da tal menina e falar-lhe coisas do tipo: “como você
está bonita hoje”, “tem alguma coisa diferente em você.”. Fazia isso todos os
dias, mas nunca conseguiu se declarar. E a menina também nunca soube que ele
era cego.
Por circunstâncias da vida, acabou
perdendo contato com o tal amigo venezuelano, e também com a menina da primeira
fila. Causou-se, teve filhos. Passados mais de trinta anos, por intermédio de
redes sociais, ele voltou a ter contato com o colega de classe. E reencontrou
também a menina da primeira fila. Inicialmente, ele pensou que todo aquele
sentimento que ele tinha por ela havia passado, mas quando ouviu de novo sua
voz ao telefone, disse que todas aquelas sensações da adolescência voltaram,
como se ele nunca tivesse deixado de estar ao lado dela. Sentiu-se novamente o
mesmo menino, que passava por perto dela, toda manhã, para dizer-lhe elogios,
mesmo sem enxergá-la. Falou também da importância de reencontrar o amigo, que
havia sido seus olhos por tanto tempo, que descrevia o mundo para ele e o fazia
experimentar coisas como, por exemplo, dirigir uma Variant 76, que seria
impossível, não fosse a coragem e a dedicação daquele seu amigo de infância.
Tanto a menina da primeira fila – hoje sua namorada - como o amigo venezuelano,
estavam na plateia do Jô. Dentre as muitas coisas que ele disse, uma me chamou
mais a atenção. Pra tudo que ele deseja ter ideia de como é, ele pede a pelo
menos cinco pessoas que descreva. Por exemplo, em pé na Pedra do Arpoador,
diante do pôr-do-sol. “O que você vê?”, ele perguntaria a cinco pessoas. E cada
uma delas descreveria à sua maneira. Disse ele, que só assim ele acredita
conseguir fazer sua imaginação chegar mais perto do que de fato é o pôr-do-sol
no Arpoador, pois cada pessoa tem a sua visão própria, enfatiza um ou outro
detalhe, percebe uma ou outra nuance. Quando a gente pode ver sozinho, os
detalhes, as nuances podem passar despercebidas. E a gente cai na ilusão que o
mundo é simplesmente aquilo que nossos olhos captam.
No show da Zizi, acabamos ficando num
lugar não muito confortável. Um senhor bem alto sentou-se à nossa frente. A
gente tinha que ficar se esquivando dele o tempo todo para vê-la melhor. Isso
acabou nos deixando incomodados, desviando nossa atenção, enfim, tirando um
pouco da mágica do espetáculo. No entanto, em dado momento do show, eu decidi
aproveitá-lo, independente de qualquer coisa, desviando meu olhar por entre as
cabeças à minha frente, buscando uma visão melhor, e tentando sentir a música
que em verdade prescindia dos meus olhos para acessar a minha alma. Em casa,
ainda com aquelas canções e aquela voz ecoando, depois de conhecer aquele homem
cego e suas histórias de um amor que vai além do que olhos possam captar,
lembrei-me então do verso que tanto havia me emocionado durante o show. “O amor
fez parte de tudo que nos guiou. Na inocência cega. No risco das palavras. E
até nos risco da palavra: AMOR”. Fiquei pensando que nossa felicidade,
definitivamente, depende da forma como decidimos olhar a vida. Ser feliz é uma
questão pessoal, ou seja, é algo que depende acima de tudo de nossas escolhas.
No entanto, encontrar essa tal felicidade fica bem mais fácil quando temos ao
nosso lado alguém que nos ajuda a captar os detalhes, as nuances, que sozinhos
seríamos incapazes de enxergar.
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