sexta-feira, 24 de maio de 2013

Meu ensaio pessoal sobre a cegueira

Quando assisti ao filme “Ensaio sobre a cegueira” em DVD, passei por uma experiência bastante inusitada. E que, por isso, acabou sendo marcante. Mexendo no controle remoto para colocar legenda em português, acabei selecionando uma opção de áudio, em que além das falas dos atores, o narrador ia descrevendo cada uma das cenas, ou seja, narrando tudo aquilo que não era possível perceber apenas ouvindo as falas dos personagens. O narrador descrevia coisas como: “a mulher do médico entra no supermercado saqueado”, “muito lixo espalhado pelas ruas”, “fez-se um grande clarão!” etc. A princípio achei aquilo muito estranho, mas como era um filme sobre a cegueira, pensei que fazia parte do esquema, levar o expectador a ter essa experiência. Vi o filme todo assim. De vez em quando eu até fechava os olhos e tentava fazer o exercício de imaginar as cenas narradas. Mais tarde, comentando com alguns amigos, eles me disseram que não tinham visto o filme desta forma. Foi então que me dei conta de que havia escolhido – por engano – a opção de áudio para deficientes visuais. Por coincidência ou não, minha experiência com o filme teve esse quê a mais. Assistir a um filme sobre a cegueira, do ponto-de-vista de um cego, acabou sendo uma experiência interessante. 

O filme por si só renderia várias histórias e reflexões. No entanto, lembrei-me dessa situação, pois no início desta semana, vendo o Programa do Jô, depois de ter chegado de um show da Zizi Possi, assisti a uma entrevista de um homem cego – ele mesmo preferia ser chamado assim, em vez de ser tratado de deficiente visual. Vejam só: o tal homem foi chamado para ser entrevistado, por ser um dos mais assíduos frequentadores de bibliotecas públicas em São Paulo. Ele contou sua história e as dificuldades pelas quais havia passado durante a sua infância e adolescência, pois na época, as escolas não tinham nenhum tipo de politica de acessibilidade. A escola para cegos mais próxima de sua casa ficava ainda muito distante e seria impossível para seus pais levá-lo e buscá-lo na tal escola todos os dias. Desta forma, eles o matriculavam em escolas ditas normais e, a seu pedido, não informavam que ele era cego. É óbvio que ele passava por poucas e boas, até que um ou outro aluno ou professor descobria, e passava então a ajudá-lo. Mais ainda assim ele repetia muitas vezes as séries. Quando chegou ao ginásio, veio estudar em sua turma, um menino venezuelano, que passou a auxiliá-lo definitivamente. E, como ele mesmo falou, seus problemas acabaram, pois o tal amigo passou a ser os olhos dele. O tal amigo venezuelano, com o auxílio de outros colegas, ajudavam –no nas aulas, descreviam as situações, conduziam-no, de forma que a turma não soubesse que ele era cego. Num inicio de ano, já no ensino médio (antigo segundo grau, e na época dele, colegial), no primeiro dia de aula, ele – o cego – pede ao amigo venezuelano que descreva os colegas de turma. O amigo então começa a descrever detalhadamente cada um dos alunos, até que chega a vez de uma menina que sentava na primeira fileira. O cego então se interessa pela descrição e acaba se apaixonando pela tal menina. Todos os dias, ao chegar à classe, ele que já havia decorado um caminho para ir direito ao fundo da sala para sentar próximo aos amigos, passou a desviar o caminho para se aproximar da tal menina e falar-lhe coisas do tipo: “como você está bonita hoje”, “tem alguma coisa diferente em você.”. Fazia isso todos os dias, mas nunca conseguiu se declarar. E a menina também nunca soube que ele era cego.

Por circunstâncias da vida, acabou perdendo contato com o tal amigo venezuelano, e também com a menina da primeira fila. Causou-se, teve filhos. Passados mais de trinta anos, por intermédio de redes sociais, ele voltou a ter contato com o colega de classe. E reencontrou também a menina da primeira fila. Inicialmente, ele pensou que todo aquele sentimento que ele tinha por ela havia passado, mas quando ouviu de novo sua voz ao telefone, disse que todas aquelas sensações da adolescência voltaram, como se ele nunca tivesse deixado de estar ao lado dela. Sentiu-se novamente o mesmo menino, que passava por perto dela, toda manhã, para dizer-lhe elogios, mesmo sem enxergá-la. Falou também da importância de reencontrar o amigo, que havia sido seus olhos por tanto tempo, que descrevia o mundo para ele e o fazia experimentar coisas como, por exemplo, dirigir uma Variant 76, que seria impossível, não fosse a coragem e a dedicação daquele seu amigo de infância. Tanto a menina da primeira fila – hoje sua namorada - como o amigo venezuelano, estavam na plateia do Jô. Dentre as muitas coisas que ele disse, uma me chamou mais a atenção. Pra tudo que ele deseja ter ideia de como é, ele pede a pelo menos cinco pessoas que descreva. Por exemplo, em pé na Pedra do Arpoador, diante do pôr-do-sol. “O que você vê?”, ele perguntaria a cinco pessoas. E cada uma delas descreveria à sua maneira. Disse ele, que só assim ele acredita conseguir fazer sua imaginação chegar mais perto do que de fato é o pôr-do-sol no Arpoador, pois cada pessoa tem a sua visão própria, enfatiza um ou outro detalhe, percebe uma ou outra nuance. Quando a gente pode ver sozinho, os detalhes, as nuances podem passar despercebidas. E a gente cai na ilusão que o mundo é simplesmente aquilo que nossos olhos captam.


No show da Zizi, acabamos ficando num lugar não muito confortável. Um senhor bem alto sentou-se à nossa frente. A gente tinha que ficar se esquivando dele o tempo todo para vê-la melhor. Isso acabou nos deixando incomodados, desviando nossa atenção, enfim, tirando um pouco da mágica do espetáculo. No entanto, em dado momento do show, eu decidi aproveitá-lo, independente de qualquer coisa, desviando meu olhar por entre as cabeças à minha frente, buscando uma visão melhor, e tentando sentir a música que em verdade prescindia dos meus olhos para acessar a minha alma. Em casa, ainda com aquelas canções e aquela voz ecoando, depois de conhecer aquele homem cego e suas histórias de um amor que vai além do que olhos possam captar, lembrei-me então do verso que tanto havia me emocionado durante o show. “O amor fez parte de tudo que nos guiou. Na inocência cega. No risco das palavras. E até nos risco da palavra: AMOR”. Fiquei pensando que nossa felicidade, definitivamente, depende da forma como decidimos olhar a vida. Ser feliz é uma questão pessoal, ou seja, é algo que depende acima de tudo de nossas escolhas. No entanto, encontrar essa tal felicidade fica bem mais fácil quando temos ao nosso lado alguém que nos ajuda a captar os detalhes, as nuances, que sozinhos seríamos incapazes de enxergar.

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domingo, 19 de maio de 2013

Além do último capítulo...



Nestes dias de último capítulo, de fim de novela, cheguei à conclusão que felicidade não dá ibope. A gente só quer ver felicidade no final. Vida feliz é chata de acompanhar, não prende a atenção de ninguém. A gente se interessa pelo caminho, pelo esforço pra se chegar lá. Não pela felicidade em si. Certamente não faria sucesso algum uma novela, um filme, um livro etc que mostrasse a rotina feliz de um casal. Imagine se o último capítulo não fosse o fim da novela. Imagine chegar em casa toda noite, ligar a TV e, a partir de agora, ver a Morena e o Theo sendo felizes para sempre. “Hoje eu tenho que correr pra casa, não perco a novela por nada. É hoje que a Morena vai preparar um jantarzinho pro Theo. Depois ele vai ajudá-la a lavar a louça, e então ela vai trazer a sobremesa preferida dele e eles vão assistir a um filminho no DVD. Vão rir de coisas corriqueiras. Numa determinada cena, ele vai olhar pra ela, na certeza de que ela vai estar chorando, emocionada. Então, ela vai pegar no sono no colo dele. Quando o filme terminar, ele vai acordá-la, os dois vão pra cama e vão começar a dormir abraçados. Não vai ter sexo, essa noite. No meio da noite, ele vai sentir calor e vai tirar o braço e as pernas dela de cima dele. Ele vai roncar um pouco. Ela vai acordar e mexer nele para ele se virar e parar de roncar. De manhã, ele vai acordar primeiro e vai começar a fazer coisas para acordá-la. Os dois vão ficar implicando um com o outro por alguns minutos. Ele vai para o chuveiro. Ela vai ouvir o barulho da água, ainda na cama, e vai pro chuveiro também. Eles vão fazer sexo embaixo d’água. Depois do gozo, enquanto tomam banho, ela lembrará a ele que é dia de pagar o condomínio. Ele vai começar a se arrumar. Ela, então, vai preparar o café enquanto ele dá uma passada de olho no jornal. Ele faz que vai abrir a porta pra sair, ela segura a maçaneta e pede um último beijo. Ele sai. Ela fica olhando, escondendo parte do corpo por trás da porta, enquanto ele espera o elevador chegar. Então, ela volta pra cozinha e se depara com um pia cheia de louça pra lavar. Sobem os créditos”. No capítulo de amanhã, talvez eles tenham uma discussãozinha boba qualquer, vão ficar de cara feia por um tempo, aborrecidos, depois um ou outro vai ceder e a vida voltará ao normal. Vida normal, rotina. Ah, pelo amor de Deus, isso não dá ibope. Por que será que não? A verdade é que a gente passa a novela inteira torcendo pela felicidade da protagonista, mas a felicidade só tem graça se for alcançada no último capítulo. Só no último capítulo é que todo mundo casa, tem filho, enfim, todo mundo é feliz para sempre. Um pra sempre que acaba ali mesmo. Porque se continuasse, seria chato demais.

Pois é. Mas, às vezes, é isso que a gente faz da nossa vida também. Nem sempre o que deixa a gente feliz é o ser feliz de fato, mas é o fato de estar tentando ser feliz a todo custo. Na vida real, a gente torce pra ter aquela felicidade de último capítulo, mas quando ela é alcançada, a gente não sabe o que fazer com ela. Estar feliz com a rotina parece incomodar. A gente quer sempre mais. A gente quer mais emoção na trama. É claro que isso pode ser estimulante, motivador. Por outro lado, por que não querer mais do que se tem é estar acomodado? Estar satisfeito é sempre sinal de falta de interesse, de falta de ambição, de inércia? Eu, por exemplo, tracei objetivos na vida, desde muito cedo, e foquei meus esforços em alcançá-los. Hoje, em muitos momentos, vivo a sensação de ter chegado exatamente no ponto onde eu sonhei estar. Não que eu não tenha novos objetivos, que não tenha mais sonhos. Até porque eu planejei chegar aonde cheguei, justamente para poder sonhar mais e mais, e ter a possibilidade de ter tempo disponível pra praticar a realização de meus novos sonhos. É óbvio que viver acomodado, satisfeito com pouco, é ruim. Mas desacelerar depois que a fita foi rompida no ponto de chegada e comemorar, desfrutar da vitória, por alguns instantes, também não faz parte do processo? Estar satisfeito pode ser pura e simplesmente sinal de que se chegou lá. E isso não é ruim. O esforço a partir de então pode ser empregado na nobre tarefa de tentar manter a posição alcançada, fazer a tal felicidade de último capítulo perdurar por muito tempo. E isso não é tarefa fácil não! Pelo contrário, requer muita dedicação. Pois a nossa felicidade é de vida real, precisa continuar além do momento em que a palavra “fim” surge na tela. Precisa continuar na rotina, no dia-a-dia, nos momentos que não dão ibope, nos momentos em que ninguém correria pra casa pra acompanhar a nossa novela. Não dá pra se viver em função de ser feliz apenas no final. E, quando muito, mais uma vez na reprise do sábado. O que a gente quer é um pra sempre que continue na segunda-feira. Um pra sempre que suporte a rotina, que vá além do aviso de que essa história é uma obra de ficção, e que qualquer semelhança é mera coincidência. Porque, de fato, não é.
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