segunda-feira, 10 de junho de 2013

Desde o tempo em que o Merthiolate ardia!



Será que alguém já pensou nos efeitos causados a uma geração de crianças e adolescentes, que passou a vida inteira sem saber o que é um remédio que arde? Lembro-me muito bem de que passar Merthiolate nos machucados quando éramos criança era um evento que acabava mobilizando grande parte da família. A criança estava lá quietinha, brincando, quando, de repente, começava a movimentação, aquela troca de olhares entre os adultos. Geralmente a mãe segurava a criança, que quando via aquele vidrinho âmbar, que tinha na tampa uma haste com uma redinha de plástico no fim, já abria o maior berreiro. Havia então todo um cerimonial, toda uma etapa de negociações e convencimentos e promessas. Então, só depois que se jurasse que haveria sopro antes, durante e depois da aplicação do maldito antisséptico, a criança resignada permitia que se fizesse o que não havia remédio. Lá em casa, por exemplo, tinha que ligar até ventilador em cima. Olha que ainda estou me referindo ao Merthiolate vermelho, aquele que deixava as crianças todas pintadas pelo corpo inteiro. Depois que inventaram o Merthiolate incolor, a coisa ficou ainda pior. Lá em casa, a gente cismava que ele ardia ainda mais. “Pai, passa mercúrio, por favor!”. “Mercúrio não arde, não presta!”. Portanto, minha memória afetiva não me permite confiar num Merthiolate que não arde. É uma questão de princípios.

Sinceramente, não sei onde querem chegar com essa história de que criança não pode sofrer. Essa superproteção exagerada. Estamos construindo uma sociedade de gente despreparada para a decepção, para a tristeza, para a morte. Como se estas coisas todas não fizessem parte da vida. Hoje em dia, por exemplo, é quase inadmissível uma reprovação na escola. Obviamente, existem os exageros de ambas as partes. Mas a decepção faz parte da vida, o fracasso é inerente, e a gente precisa aprender a lidar com isso de forma proveitosa. Lá em casa, desde criança, sempre estivemos inseridos em todas as situações familiares, fossem elas boas ou ruins. Sempre soube que era possível sofrer, se decepcionar mesmo com aquelas pessoas mais próximas, que irmãos brigavam, mas que se perdoavam também. A gente se alegrava coma a notícia de mais um bebê, um primo, uma irmã que ia chegar etc. Mas também não éramos privados da dor causada pela perda de pessoas queridas. Lembro-me da primeira vez em que me deparei com a morte. Meu tio, um dos irmãos mais novos de minha mãe, morreu num acidente de carro aos vinte e um anos de idade. Foi uma comoção total na família. Eu na época tinha uns sete anos de idade, minhas irmãs ainda mais novas. Mas, lembro-me de termos ido todos ao cemitério, de termos participado do velório. Lembro da gente brincando entre os túmulos, rindo das fotos, dos nomes das pessoas mortas. Depois, à medida que fui crescendo, eu gostava de ir aos enterros de parentes com minha avó. Isso tudo pode parecer mórbido, mas estou falando do meu tempo de criança. Do meu olhar de criança, que ainda não entendia a verdadeira gravidade e importância daqueles momentos. Mas, de certa forma, experimentar todas aquelas situações já ia incutindo em mim certo respeito por tudo aquilo. De alguma maneira, eu entendia a solenidade daqueles momentos, em que a família se solidarizava com a dor das pessoas. Aquela família que muitas vezes se reunia para celebrar a vida, comemorar aniversários, batizados, estava ali também no momento de dor.

Quando ouço, por exemplo, essas novas versões de músicas infantis, do tipo “não atire o pau no gato-to,  porque isso-so-so não se faz-faz-faz...”, fico pensando que passei a minha infância inteira, cantando a versão não-politicamente correta desta mesma canção, aquela em que o gato levava uma paulada, se ferrava todo, mas conseguia escapar e não morria. Na verdade, não me lembro de saber exatamente o que estava cantando naquela época, até porque coisas como “dona-chica-ca-ca-dimirou-se-se-duberrô-duberrô-que-o-gato-deu” não faziam o mínimo sentido pra mim. Fato é que não foi porque eu cantava isso quando criança, que eu sai dando paulada em gatos, cachorros, ou qualquer outro animal, à torto e à direito. E, é claro que também o fato de eu ter aleijado alguns grilos, marimbondos e formigas quando criança, não me transformou num sujeito perverso, de má índole, nem num adulto que maltrata animais. Até porque, pelo menos na minha época, quem ensinava que maltratar animais – dentre tantas outras questões – não era legal, era pai e mãe, e não pura e simplesmente uma cantiga de roda, que se cantava inocentemente. Isso sem falar nas versões atuais das tradicionais histórias infantis, dos contos de fadas, em que a bruxa não manda mais arrancar o coração da mocinha, ou que o lobo-mau não engole mais a vovozinha, que a madrasta não escraviza mais a enteada, etc etc. Que mundo é esse que esse pessoal está querendo ensinar pras crianças?

O que temos de aprender desde sempre é que nascemos mesmo para sermos felizes, mas que isso é uma conquista diária, uma luta pra vida toda. A gente vai sim quebrar a cara, vai ter decepção, vai sofrer, vai ficar triste, vai perder gente que ama, vai sentir saudade, e nem sempre vai ter um remedinho tarja preta pra resolver. O que temos que nos acostumar desde sempre é tudo isso faz parte da vida. E, de fato, podemos até mesmo nos transformar em seres humanos melhores, se aprendermos a lidar com isso desde cedo. Há dias na vida em que você acorda cedo, vai comprar flores pra enfeitar a casa para receber amigos queridos. E, de repente, o vaso, que era de vidro, se quebra. Você se corta todo, termina a manhã num pronto-socorro, leva um monte de ponto nos dedos. Então, você se dá conta, que nem tudo na vida são flores. Há vasos e vidros quebrados, há sangue, há dor. Mas também há gente que se solidariza, que larga tudo pra te socorrer. Há gente que te ajuda o dia inteiro pra que a festa continue. Mesmo com os dedos cortados, mesmo sem vaso de cristal, as flores ainda enfeitam a casa, os amigos ainda estão lá, por perto, dispostos a celebrar a vida contigo. A vida continua. Pois, a felicidade de uma vida se constrói com alegrias e tristezas, momentos de prazer e de dor. Isso, eu aprendi desde cedo. Porque é assim desde que o mundo é mundo. É assim desde o tempo em que o Merthiolate ardia. E nem por isso, mesmo depois da dor dos machucados, da ardência ou do amargor dos remédios, a gente nunca desistia de brincar, a gente não deixava se arriscar. O que a gente sempre quis – e continua querendo – é ser feliz, mesmo sabendo que pra isso, às vezes, seja preciso sofrer um pouquinho.

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3 comentários:

  1. Mais uma vez, um texto maravilhoso, Dedé!! Agora me diz, por que na hora do sofrimento, a gente não consegue enxergar que vai ser feliz lá na frente? bjs

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    1. É porque na hora tá ardendo e a gente fica focado nisso, mas com o tempo a gente aprende! Bjão.

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  2. Excelente, sou completamente contra o politicamente correto e a supervalorização do sofrimento, isso sem julgar uma geração inteira, parabéns cara.

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