terça-feira, 23 de setembro de 2014

Sobre rainhas...


Também pra mim, rezar a Salve Rainha é como ouvir poesia. Aprendi essa oração com minha avó, que gostava muito dela. Ela dizia que devíamos rezar a Salve Rainha nos momentos mais difceis, pois era uma oração muito poderosa. Hoje quando vou caminhando para o trabalho, passo todos os dias por uma linda capelinha dedicada a N. Sra. da Conceição e sempre me lembro dessa oração e consequentemente da minha avó. Rezo quase que instintivamente a Salve Rainha, olho pro Céu, esteja ele azul ou nublado, peço luz para alma de minha avó. Em dias de sorte, encontro pelo caminho uma maria-sem-vergonha ou florzinha lilás qualquer, cor preferida de minha avó, e a singeleza da flor é como um afago daquelas que ela me dava. Assim, desde então a saudade vai amenizando.



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Saudade atávica de Portugal



Tenho uma saudade atávica de Portugal. Hoje, ouvindo canções lusitanas, lembrei-me de Portugal, de Lisboa, de mim sentado à beira do Tejo, do por-do-sol na Ribeira, das gaivotas sobrevoando o Douro. Sinto essa saudade de algo que não vivi, saudade que veio na memória, herança de meus bisavós, de algo que ficou deles em mim, em minhas células, em meu código genético. Lembrei-me do que senti ao chegar no Porto, da incrível sensação de estar voltando àquela terra tão minha, mas que no entanto nunca tinha colocado os pés. Foi como se o desejo de um dia retornar à terrinha, que certamente esteve no coração de S. Manoel e D. Josephina, que partiram de sua pátria, das terras de trás-os-montes, passando dias a cruzar o Atlântico, em busca de uma terra de esperanças, de sonhos, tivesse finalmente sido cumprido. Eu, que não convivi com eles, não tenho lembranças, chorei de uma alegria tão minha, como se de fato voltasse à terra de onde um dia havia partido. Senti como se tivesse finalmente libertado da alma deles a saudade que nem a morte pode findar. O fado me emociona de um jeito, que suponho só um português pode sentir, e eu sinto isso nitidamente. Tenho uma saudade de Portugal que às vezes me chega a doer.

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Eu vi o amor...


Hoje, em meio à correria do meu dia, entre engarrafamentos na Av. Brasil e Linha Vermelha, longa espera para uma consulta de minha mãe no HCE, dei uma passada na casa de minha irmã para ver meus sobrinhos. Tudo muito cotidiano. No entanto, fui pego por uma emoção muito grande quando vi, como tantas outras vezes, minha irmã interagindo com meu sobrinho mais novo. Eu fiquei realmente muito comovido e pude sentir nitidamente a força da relação entre os dois. Vi como ele, apesar dos poucos meses de vida, olha para ela com um amor que sai pelos olhos, que o faz sorrir de alegria, numa felicidade que emana e contagia quem está por perto. Por outro lado, ela também brincando com ele, beijando, acariciando, com um amor que é lindo de se ver. Eu vi a alma dos dois sorrindo uma pra outra. Minha irmã não planejava mais ter filhos, sempre foi uma mãe dedicada à educação das crianças, e quem conhece meus sobrinhos, sabe exatamente do que estou falando. O Cauã nasceu de um reencontro após vinte anos. Desde o primeiro momento em que minha irmã soube, ainda grávida de poucos meses, da possibilidade dele ter Síndrome de Down, ela sempre se mostrou confiante, guerreira e pronta a abraçar essa missão, se essa fosse a vontade Deus pra vida dela. Cauãzinho nos surpreende a cada dia, superando as dificuldades e derrubando todos os mitos a respeito dos bebês com Síndrome de Down. Minha irmã tem sido incansável na dedicação à estimulação tão essencial para o desenvolvimento do meu sobrinho, através das sessões de fisioterapia, fonoaudiologia e terapia ocupacional, praticamente todos os dias da semana. É óbvio que tudo isso só é possível devido ao suporte e carinho do meu cunhado. Hoje eu pude de fato perceber o quanto é importante o amor e a dedicação dos pais a seus filhos. Tanto pela relação dela com o Cauã quanto pela parceria dos irmãos mais velhos, que ajudam e também demostram enorme carinho pelo caçula. Seus cabelos estavam meio emaranhados, as unhas sem esmalte, a sobrancelha por fazer. Porém, que importância pode ter isso? Qual o tamanho real dessas coisas? Hoje eu vi no olhar trocado entre ela e ele um amor incondicional, uma gratidão que brota dos olhos daquele bebê, como se ele dissesse a todo tempo: "mamãe, obrigado por me fazer o bebê mais feliz desse mundo". Saí desta visita corriqueira, inesperada, com meu espírito enlevado! Obrigado também por isso, irmã. Te amo muito!


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domingo, 14 de setembro de 2014

Ser diferente é exatamente igual

Pela primeira vez, estivemos só nós dois. Eram sete da manhã. Ele veio todo arrumadinho, jardineira jeans, body laranja, tênis. Olhos amendoados que prestavam atenção em tudo. Coloquei-o na cadeirinha atrás do carro. Ele ficou lá quietinho, olhando de vez em quando pra rua, outras vezes fixo pra mim, que dirigia, e vez ou outra olhava pra trás. O samba, daqueles do recôncavo, na voz de Bethânia, que tocava no CD player me fez lembrar de outro menino que há alguns anos atrás dizia: “tio, põe aquela dos camaradas”. Em pouco tempo, com o balanço do carro, ele pegou no sono. Eu fiquei pensando em como tudo é igual, tentando imaginar o que estaria passando pela cabeça daquele menino, com quem estaria sonhando naquele momento? Não houve tempo de lembrar da diferença. Como ele, eu também não me dava conta de que havia um cromossomo a mais. Mas isso de fato deveria ser lembrado? Não. Pois nada muda. Ser diferente é exatamente igual. Dormia ali a mesma inocência, com seu tempo de viver descobertas, de amar, de dar e receber carinho, de sentir dor, de ficar triste, de estar alegre. O diferente sorri e chora, como todo mundo.

         Só agora, enquanto escrevo, me veio à mente o dia em que soubemos que aquele bebê, que pela força do destino, ou mesmo das circunstâncias, nascia em nossa família, era “especial”. Especial era a palavra escolhida então para amenizar ou nos convencer de algo que naquele momento daríamos tudo pra mudar. Lembrei-me da nossa primeira foto em família, da pediatra que insistia em tirar a foto do grupo. Da alegria que parecia inabalável e que durou parcos minutos. Meu cunhado com aquele roupão verde, enquanto o bebê ainda meio ensebado se agitava na incubadora, me dizia: “nossas expectativas se confirmaram, ele tem síndrome de down”. Expectativas?! Como de costume, diante de notícias inesperadas, eu tentei manter a calma e dar a mim mesmo alguns segundos para entender o que estava acontecendo. Enquanto todos olhavam o bebê mais agitado, mais esperto do berçário, felizes, orgulhosos, avó, tia, padrinho, eu fiz parar o tempo ao meu redor e projetei todas as dificuldades, limitações, preconceitos, que ele sofreria. Diante do inesperado, do pouco provável, eu me perguntava o porquê daquilo estar acontecendo conosco. Por que quis o destino nos colocar naquela situação após vinte anos, quando não esperávamos mais um bebê na família, quando já nos sentíamos aliviados de sermos todos "perfeitos". Por quê? 

A resposta a essa pergunta veio muito antes do que eu poderia supor. A alegria que inundava aquele quarto da maternidade, o sorriso no rosto de minha irmã, o amor vazando pelos olhos de meu cunhado, não eram diferentes. Tudo igual às outras quatro vezes que havíamos passado por aqueles momentos, quando as crianças que haviam nascido eram "perfeitas" como sonháramos, numa época em que nem nos preocupávamos em contar cromossomos. A cada um que chegava, irmãos, primos, avós, tios, todos tinham a mesma reação. Eu via ali, diante dos meus olhos, aquela minha gente pondo em prática tudo que havíamos aprendido desde sempre, e não podia ser diferente, pois havíamos apreendido o amor, havia o vínculo que nos marcava como família, de sangue ou não. 

Desde então tudo o que sinto é orgulho de pertencer a essa gente, que caminha comigo, que sonha comigo. Falo obviamente da família, dos irmãos, dos pais, sobrinhos, dos tios, primos, mas falo como o mesmo orgulho também dos amigos, irmãos de alma, que o acaso, destino, circunstâncias, Deus, ou o que seja, colocou no meu caminho.

Eu e ele sozinhos pela primeira vez. Pensei no quanto a vida da gente é surpreendente e dinâmica. Pensei na oportunidade que havíamos recebido. Mas sobretudo me senti feliz, concretamente feliz, sim uma felicidade palpável, essa que tem nos feito experimentar na realidade tudo o que tem acontecido desde que esse menino veio conviver conosco. As experiências da família que está unida em qualquer situação, das minhas irmãs, do quanto conseguimos dar suporte uns aos outros, do quanto conseguimos dosar as nossas diferenças e conseguimos conviver esse amor fraternal de forma tão real, concreta, sem firulas de fotografias. Minha mãe e sua capacidade de lidar com tudo isso, de forma tão sábia, seu amor que está acima de qualquer dificuldade, de sua capacidade de não se permitir contaminar por preconceitos e padrões. Meus sobrinhos tão lindamente humanos, carinhosos, vivendo essa forma tão independente de amor, de família, o quanto eles se tornarão seres humanos melhores, mais antenados às dificuldades e as complexidades do indivíduo e como é possível superar e tornar as coisas verdadeiramente mais fáceis, quando se caminha junto. Do amor que transborda e alinhava minha relação de cumplicidade, companheirismo de uma vida inteira, do quanto isso tudo tem acrescentado ao nosso cotidiano. Enfim, da capacidade de se deixar invadir e transformar-se por essa criança que temos em comum.

Onde ficaram aquelas preocupações todas? Onde foi parar o medo do futuro? Que certezas podemos ter a respeito da vida? Todos somos limitados, de alguma forma. Quais as garantias que temos de que seremos felizes, de que alcançaremos nossos objetivos? O fato de termos um cromossomo a menos nos dá algum passaporte para um futuro fácil, com felicidade, realizações, garantias, sucesso? O que é ser perfeito? Naquele dia, quando ouvi pela primeira vez a frase “está confirmado, nosso Cauã tem Down”, eu tive medo de todas essas perguntas e por intermináveis segundos, o tempo parou, congelou. Hoje, passados seis meses, depois que o tempo voltou ao seu curso, em que vimos vivendo um dia após o outro, em que cada etapa é vencida, cada mito cai por terra. É como se juntos, todos nós, subíssemos no mesmo pódio a todo tempo, mostrando ao mundo que nós temos um troféu, nós ganhamos a mais perfeita coroa de louros. 

Não preciso convencer ninguém de nada, nem a mim mesmo eu preciso. É obvio que não nos foi dada possibilidade de escolha, e o incrível da vida está aí. Não vou me colocar na posição de que se pudesse escolher... pois, de fato, nem sempre nos é dada essa oportunidade. No entanto, quando podemos, que façamos como temos feito, escolhamos ser felizes em fazer do que temos a grande oportunidade de nos tornamos seres humanos melhores, de colocarmos em prática a firmeza de caminharmos juntos, de suportarmo-nos mutuamente. Também não vou dizer que tem sido difícil, pois me parece que depois dele tem sido tão mais prazeroso, tão mais doce, mais leve, viver. Ainda não tenho todas as respostas para as perguntas que me afligiram naquele instante, mas elas também não me afligem mais. O que tenho hoje me sustenta, me fortalece, me fez sentir especial, por ter sido escolhido pela vida para viver essa experiência. Ainda há dúvidas, como sempre houve e sempre haverá. Como disse, não há garantias. Mas isso não é privilégio de quem tem um cromossomo a mais. A incerteza faz parte da vida. No entanto, as certezas ficaram mais claras desde então. Não sei como será o futuro, e nunca haveria de saber. Contento-me com o presente. E esse cromossomo a mais, sem exagero, tem sido o melhor de todos eles.



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sábado, 19 de julho de 2014

Carta para Rubem Alves, esse amigo que nunca me viu.

Querido amigo-que-nunca-me-viu,

“Eu tenho muitos amigos que continuam a gostar de mim, a despeito de me conhecerem. E tenho também muitos amigos que nunca vi”. (Rubem Alves)

Hoje, dia do meu aniversário,  dentre as muitas mensagens recheadas de desejos de felicidade que tilintavam em meu celular, uma amiga, que você também nunca viu, mas que temos em comum, me dizia: “O Rubem Alves faleceu L”. Imediatamente fui tomado por um pesar, uma tristeza, daquelas que a gente só sente quando perde um amigo querido.

Há menos de uma semana, entrei numa livraria para comprar um presente e escolhi um livro seu. Gostei tanto do livro que desisti de dar de presente e fiquei com ele pra mim. Hoje ao saber da notícia de sua morte, corri para abrir o meu presente... e ler suas passagens da alma e pensei: “meu Deus, quanto tem de mim nisso tudo”. Obrigado, pelo lindo presente. 

Desde que li um texto seu pela primeira vez, fiquei encantado com sua forma de olhar o mundo, a visão tão leve e o pensamento preciso a respeito da simplicidade da vida. Quantas então não foram as vezes que você me acompanhou em minhas viagens, nas intermináveis horas dentro de um avião, nas salas de espera da vida. Desde então, ao ler os seus livros, seus pensamentos, é como se eu estivesse conversando com um amigo querido, um amigo mais experiente, muito mais sábio, com um jeito de pensar muito leve e libertador. Obrigado por me fazer entender que "pensar é voar sobre o que não se sabe".

Quantas e quantas vezes, fomos apenas você e eu. No silêncio do meu apartamento, na contraluz da luminária, varamos madrugadas conversando deliciosamente. Você me fazendo rir, me fazendo chorar, enchendo meu coração de esperança na vida, nas pessoas, me ensinando a ser melhor professor, educador, ser humano. Me fazendo sentir privilegiado pela nobreza do meu ofício.

Eu não posso deixar de te agradecer pelo tanto que me ensinou a respeito de catar a poesia que se derrama no dia-a-dia, na simplicidade das coisas, no belo da natureza. Você me ensinou que “os olhos são pintores: pintam o mundo de fora com as cores que moram dentro deles”. Me ensinou a colher o dia como quem colhe morangos vermelhos à beira do abismo. Até da culpa de às vezes ser preguiçoso você me livrou, me dizendo que a “preguiça é a virtude dos seres que estão em paz com vida”. Sempre lembro disso quando tenho umas provas e relatoriozinhos pra corrigir e me apega a isso com toda força.

Sabe, eu vou viver não sei quantos dias e talvez não serei capaz de agradecer o quanto você me ensinou sobre Deus. Você me ajudou a tirá-lo das gaiolas em que eu o havia aprisionado. Você me apresentou um Deus tão mais leve, tão mais Amor, Inteligência e Liberdade. Você me apresentou um Deus que não vive enclausurado em templos, mas anda pelos jardins. Como poderei retribuir isso?

Lembra quando você me disse certa vez que “o sonho de cruzar os mares precede a ciência de construir navios”? Eu entendi desde então que era preciso sonhar sempre, pois o sonho é a força motriz da realidade. Foi também em uma de nossas inúmeras conversas que aprendi a empurrar o balanço da criança que existe em mim com as duas mãos, aproveitando o momento intensamente, vivendo o presente, e deixando pra lá o jornal cheio de notícias desanimadores, que eu lia enquanto empurrava o meu menino. Aprendi mais do que nunca que saber ser criança é a receita da felicidade. 

Lembra do pé de jabuticaba, cheinho de bolotinhas? Ai como eu aproveitei. Como eu fui e voltei naquele pé várias e várias vezes desde então. Lembra de mim chupando os carocinhos da fruta-do-conde com as crianças? Lembra daquela minha azaleia, que nada sabe de química, biologia, física, mas que como nenhum cientista consegue transformar o que absorve da terra e devolver-me como num encanto lindas flores lilases que me fazem lembrar de uma avó querida? Pois, então, ela ainda está por aqui e dá flores cada dia mais lindas. Dia desses, eu plantei alecrim e hortelã, e vingou. Foi você que me ensinou que cultivar jardins era importante. O alecrim anda perfumando minha casa.

Como não lembrar de você diante de folhas amarelas de Ipê caídas lá na estrada que me levava para o encontro com o rio, o velho Chico. E mesmo ao mergulhar no rio, ou estar sentado à beira dele, ou mesmo à sombra de um enorme flamboyant, com aqueles meus amigos que você me ensinou a valorizar e a aproveitar cada momento junto deles, pois “estar junto é divino. Deus mora nos intervalos entre as pessoas que se amam”.

Querido amigo, não fica preocupado comigo. Hoje, também por causa de você, eu respeito meus momentos de tristeza e dor, pois a tristeza também pode ser bela e como você mesmo me ensinou “ostra feliz não faz pérola”. Sei que você não tinha medo da morte, só queria era ficar por aqui, por achar o mundo tão bonito! Mas como você mesmo dizia, “escrever é o meu jeito de ficar por aqui. Cada texto é uma semente. Depois que eu for, elas ficarão”. Você estava certo. Como disse, outra velhinha amiga, também muito sábia, "não morre aquele que deixou na terra a melodia do seu cântico na música de seus versos". Por aqui você plantou jardins. Você ficou. E ficará pra sempre.

Dizem por aí que morrer é passagem, é nascer de novo. Sendo assim, poderemos comemorar nossos aniversários juntos a partir de agora e pra sempre. E, por falar em aniversário, vou ficando por aqui. Ainda estou cheio de coisas pra fazer, vai ter festa amanhã. Só parei para um papinho rápido. Abri o armário e vi que ainda tenho muitos e muitos livros seus para ler. Que bom. Logo, logo, volto e a gente coloca a conversa em dia. No mais, feliz vida eterna pra você. Nos vemos no tempo da delicadeza!


Desse seu amigo que você nunca viu.



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sexta-feira, 20 de junho de 2014

É preciso saber viver, pois viver não é preciso.

Sentei à frente do computador com a ideia de escrever sobre as minhas primeiras impressões a respeito do novo CD de Maria Bethânia, “Meus Quintais”. Porém, há vezes em que as palavras se impõem de tal maneira, que parece até que elas têm vontade própria e se colocam quando e do modo como querem.

Em meio a tanta leitura a respeito do novo CD, entrevistas, vídeos, declarações, etc., acabei deparando-me novamente com um video-release em que a cantora fala sobre o porquê de seu novo trabalho trazer à tona suas memórias de menina, pendurada num galho de árvore, no quintal de sua casa em Santo Amaro da Purificação.

“É porque estou ficando velha, porque eu sinto falta disso, sinto falta de todos os meus que já se foram... que gostavam de mim... com muita coragem de dizer que gostavam”.

Nesse momento, sua voz fica embargada, ela respira fundo e a emoção toma conta por completo. Mostra-se a menina. Despe-se a cantora, a diva do imaginário popular. Diante da memória do seu quintal, de sua meninice, naquele instante, é como se nada mais fosse importante. A emoção tocou a essência do ser. Lembrei-me do meu encontro com ela, certa vez, e da dedicatória que dizia: “eu sou apenas uma mulher”. Entendi, finalmente, o que ela quis dizer.

Continuando a entrevista, em dado momento, ela afirma que não se sente saudosa, não sente falta da menina, pois a menina está sempre com ela. Sente falta dos seus, mas que, de alguma maneira, também estão com ela e nela. Veio-me então o “meu” menino, o meu quintal, o meu sobrado, e a mesma falta que sinto daquela que me ensinou tudo sobre “amor, festa e devoção”. Pra mim, também, essa falta nunca foi tristeza. Pelo contrário, sempre me impulsionou a seguir em frente. A presença tão nítida de minha avó em mim, nos meus gestos, em minhas atitudes frente à vida, tornou sua morte muito mais amena, bem menos dolorosa. Essa falta também tem me levado desde então ao meu quintal, onde continuo menino, onde sou mais eu.

De repente, em meio a toda essa reflexão, salta na tela do computador, uma foto de meu sobrinho, internado há alguns dias numa UTI infantil, com olhos vivos, atento, brincando embolado entre esparadrapos, mangueirinhas de soro, agulhas e acessos. A metáfora, por quem tanto tenho apreço, meteu-se em meio às palavras. Veio-me novamente minha avó e a mesma capacidade de não deixar a alegria sucumbir à dor.

É claro, que de alguma maneira isso está conectado com os “meus” de que Bethânia falou. Pois, nossas reações diante da vida dependem da fonte, da origem, daquilo que nos foi oferecido pelos “nossos”. E é nessas horas que instintivamente somos capazes de repetir os mesmos gestos, a mesma forma de lidar com o inesperado. “Tem a ver com o galho”. Tem a ver com a árvore, com as raízes, com o quintal. Tem a ver, por exemplo, com a nitidez com que vejo em meu sobrinho, mesmo que recém-nascido, a mesma atitude de não entregar-se a dor que via em minha avó. Tem a ver com o umbigo. É óbvio, tem a ver com os “meus”.

A perda, a falta dos que se foram, a emoção, a capacidade de superação, a metáfora, enfim, o livre arbítrio das palavras, acabaram por me trazer de volta o que disse em entrevista ao Fantástico o também cantor Erasmo Carlos, dez dias após a morte de seu filho, estreando uma nova turnê de shows:

“Todos têm sua cota de alegria e de sofrimento. Apenas chegou a hora. Algum dedo apontou pra mim e falou: ‘chegou a sua hora de sofrer um pouco’. Eu vivo esse momento. E daqui a pouco minha cota vai melhorar de novo”.

Desde quando assisti à entrevista, fiquei refletindo sobre essa necessidade de impor-se diante da dinâmica da vida. Superar-se é sempre uma escolha. Não paralisar diante do difícil, do dolorido, depende única e exclusivamente de nós mesmos, ainda que, geralmente, tenhamos que tomar essa decisão em momentos em que talvez o que mais quiséssemos era que tudo não passasse de um sonho, de uma cena de novela, de um faz-de-conta qualquer. Não foi sem sofrer, sem chorar, sem se despedaçar, que aquele pai decidiu que o show tinha que continuar.

Será atávica essa capacidade de escolher a alegria de viver? Esteve na mãe centenária da cantora, está na própria meninice da cantora. Esteve em minha avó, está no meu sobrinho. Esteve em minha irmã e em meu cunhado quando, ainda na sala de parto, não titubearam em escolher o caminho do amor incondicional. Esteve em mim e nos “meus” quando vimos pela primeira vez escritas num pedacinho de papel nas mãos daquela pediatra as palavras “síndrome de Down”.

É lógico que escolher seguir caminhando não elimina o sofrimento inerente ao caminho. Não é garantia de que não haverá dor ou tristeza, e, em certos momentos, desânimo. Porém, retirar a “pedra do caminho”, como diz a canção do Erasmo, é questão de escolha. E, diante da necessidade que se impõe, desviar sempre pode nos trazer novas paisagens, novas formas de ver a estrada pela frente. Para nós, naquele corredor da maternidade, onde passado, presente e futuro se compactaram num átimo, que fez o tempo parar e o chão desaparecer por alguns segundos, a “pedra” imediatamente se transformou em oportunidade. Oportunidade de nos tornarmos melhores humana e espiritualmente, de estarmos mais atentos ao diferente, mais consciente das necessidades do outro. Naquele instante, nos foi dada a chance de sermos melhores pais, avós, tios, padrinhos, irmãos, primos. E, novamente, o menino, a criança, se colocou acima de qualquer rótulo de perfeição. A frustração momentânea, hoje e a cada instante percebemos, estava muito mais ligada ao medo do novo do que à realidade em si, que tem sido muito melhor do que aquela “perfeita” que idealizamos. Tempo e perfeição ganharam significados muito melhores desde então.

Portanto, tolos são aqueles que acreditam que passarão pela vida sem sofrer. Ou aqueles que, na ânsia de proteger os seus, exageram na dose e os incapacitam para as surpresas da vida. Como diria a cantora, a “vida é real e de viés”. Não há como tornar-se imune ao sofrimento, a dor, a dúvida. Tudo isso faz parte do pacote. É importante que estejamos, senão totalmente preparados, ao menos conscientes do que podemos encontrar pelo caminho. Deus nos livre de só sabermos ser “alegres”, “eufóricos”, “de bem com a vida”. Isso é falso, é frágil. Aceitar o sofrimento não é questão de covardia ou de inércia frente ao ruim da vida. Muito pelo contrário, renegá-lo, ou tentar escondê-lo, é o que pode nos dar a falsa impressão de que tudo está bem. Quando não está. Desanimar faz parte. Nessas horas é que precisamos do menino, da criança, cujo compromisso primeiro é com a alegria de viver. “A arte de sorrir, cada vez que o mundo diz que não”. A sabedoria está em tomar a dor e seguir com ela, sem se deixar paralisar por previsões desanimadoras e rótulos preestabelecidos. Carregar a dor nos braços é domá-la, é dar a ela outras cores. Essa consciência de que o sofrimento faz parte da vida, torna-o até mais simpático, mais amigo. No fim das contas, as possibilidades, as alegrias vindas da superação são tantas que a parte dolorosa fica até meio perdida, esquecida pelo caminho.

Meu avô, que já viveu bastante, e que faz parte dos “meus” que gostam de mim, com coragem de dizer que gostam, vive insistentemente repetindo – traído por sua memória vacilante – que “viver é bom, porém, saber viver é que são elas”. Ele, certamente, não lembra mais de Erasmo e Bethânia, mas sua memória não falha em afirmar que “é preciso saber viver”, sem esquecer de que “viver não é preciso”, ou seja, não tem receitas, roteiros, nem fórmulas exatas. Viver se aprende vivendo. E como dizia o poeta, "eu francamente já não quero nem saber, de quem não vai por que tem medo de sofrer. Ai de quem não rasga o coração. Esse não vai ter perdão".

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Terminei esse texto, assistindo à vitória da seleção da Costa Rica sobre a tetracampeã mundial de futebol, Itália. No chamado grupo da morte, da Copa de 2014, composto pelo azarão Costa Rica e por três seleções campeãs mundiais – Itália, Uruguai e Inglaterra – todos apostavam que a Costa Rica seria facilmente eliminada. Só eles não. Resultado, em duas rodadas, é a única seleção do grupo já classificada para a próxima fase, eliminando todas as chances da Inglaterra e deixando Itália e Uruguai em situação bem complicada. Era exatamente dessa história de não acreditar em rótulos, de superação, que eu estava tentando falar.


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sexta-feira, 13 de junho de 2014

Sobre pontes, cadeados e namorados

Pont des Arts, Paris - Abril de 2014
Saiu nos jornais, esta semana, uma reportagem a respeito da famosa Pont des Arts em Paris, onde casais apaixonados tem o costume de colocar cadeados e jogar a chave fora nas águas do rio Sena, simbolizando o amor eterno. No último domingo, a ponte cedeu, devido ao peso dos milhares de cadeados presos às grades da mesma, precisando ser interditada, pois parte do alambrado caiu. Ao ler a reportagem fiquei pensando no quão metafórica essa situação poderia ser. Na verdade, das vezes que passei por essa ponte, e por tantas outras pelos lugares que já visitei, sempre fiquei imaginando coisas sobre as histórias de amor que estavam ali representadas. Fico lendo os nomes das pessoas, dos casais, as juras de amor eterno, etc. Alguns cadeados são mais simples, outros mais ostensivos, alguns bem pequeninos, outros enormes. Sempre me pergunto: “quantos desses casais ainda permanecem juntos?”.

Nesses dias em que muitas pessoas andaram postando declarações de amor, procurando presentes, enfrentando filas em restaurantes, etc., é de se pensar a importância do simbolismo de uma data, de uma tradição, de um ritual, como aquele de colocar um cadeado pendurado numa ponte. Eu seria muito vil se tentasse dizer que essa história de comemorar dia dos namorados, pendurar cadeado em pontes, etc. é uma tremenda bobeira. Definitivamente, não acho que seja. Rituais e simbolismos são bastante úteis para marcarmos o tempo de nossas histórias. Sou completamente adepto da celebração, da festa. Porém, não passou em branco pra mim, também, o simbolismo da ponte cedendo ao peso dos cadeados. Amor é leve. Amor não aprisiona.

Parece que não há receita mágica para o amor, nem símbolos são artefatos ou truques que retiramos de uma cartola ou canastrinha encantada. Portanto, é quase que intuitivo entender que de nada adianta prender cadeados em pontes, mandar flores, postar fotos e declarações de amor em um dia do ano, se tudo não passar de promessas vãs. A eficácia está em fazer valer a simbologia do ato em si. Transformar o sinal em realidade. Pra isso é preciso ir além do próprio simbolismo. Além da ponte, além das palavras que cabem numa postagem no facebook, além da floricultura, da lojinha no shopping, do restaurante chique e disputado. Enfim, é preciso fazer-se presente, esforçar-se, doar-se, surpreender não apenas numa manhã de junho, mas a todo instante. Um amor que se deseja pra sempre pode até prescindir de símbolos, ainda que eles sejam interessantes, mas certamente para se ter uma relação duradoura é imprescindível, acima de qualquer coisa, dedicação mútua.

Portanto, creio que seja saudável que amemos além dos dias oficialmente marcados no calendário para o amor, que dediquemo-nos nas situações mais simples e cotidianas. Que tal darmos de presente ao outro, a cada dia, a nossa paciência, a nossa compreensão, nossa capacidade de silenciar quando necessário? Que tal dizermos ao nosso par um “não” bem redondo na hora certa? Que tal não economizarmos as palavras de carinho, a boa companhia, a cumplicidade, a troca de olhares nos momentos difíceis? Que tal não nos omitirmos com relação àquilo que nos incomoda no outro? Não deixarmos o "pote até aqui de mágoas"? Não esperemos para ser românticos, carinhosos, compreensíveis, alegres, apenas quando isso nos parecer ser a derradeira tentativa de salvar nossas relações de amor. Antes, esforcemo-nos, dediquemo-nos ao outro, profilaticamente. Façamos valer a pena cada instante vivido juntos. Sejamos capazes de amar, principalmente, os defeitos do outro. Que tal presentearmos o nosso companheiro ou companheira com um projeto de vida real a dois, projeto esse que inclua o esforço para se ter o máximo possível de dias alegres, que – obviamente – inclua a capacidade de surpreender o outro com momentos românticos e presentinhos inesperados, com símbolos, mas não deixe de fora a paciência para dias mais difíceis, a capacidade de compreender o outro, respeitando seus dias menos nobres? A velha história do revezamento na função de segurar a lua nas noites da vida a dois.

Sinceramente, não gosto do cadeado – cuja chave se jogou fora – como símbolo de amor verdadeiro e eterno. Como já disse, amor pra mim é liberdade. É como diz o poeta: “é um estar-se preso por vontade” e não por falta de opção, porque a chave foi perdida. Pra mim, amar é ter a chave disponível para abrir o cadeado a qualquer momento e não fazê-lo, pois os laços são mais fortes. Amor não é nó cego. Amor é feito laço de seda, lindo, mas fácil de ser desfeito, se não prestarmos atenção o tempo todo, se não vigiarmos para que ele não fique frouxo e se desfaça. É essencial reforçar os laços sempre. Amor é aliança que cada um carrega consigo, elos que se unem não por correntes, feito algemas, mas por uma ligação que não se vê, apenas se sente.


Ainda com relação aos cadeados, eu acharia mais interessante uma tradição em que os apaixonados em vez de jogar a chave fora, guardassem-na e se comprometessem em voltar à ponte quando não pretendessem mais manter a relação a dois ou assim que percebessem que a paixão se transformou em amor de fato. Desta forma, a simbologia do abrir o cadeado e jogar a chave fora faria muito mais sentido, pois teria muito mais a ver com a liberdade que só um amor verdadeiro pode nos trazer. Ainda que seja o amor-próprio. E, do ponto de vista prático, de uma forma ou de outra, dificilmente a ponte cederia.


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sexta-feira, 6 de junho de 2014

Malévola, só que não!

Fui assistir ao filme Malévola, com Angelina Jolie, sem ler absolutamente nada a respeito. É o tipo de filme que eu geralmente não me interesso. Fui mais para fazer companhia do que outra coisa. Não sou cinéfilo,
 por mais que isso pareça um pecado, uma mancha no currículo. Além disso, sou daqueles que dorme fácil numa sala de cinema, se o filme não me interessar. Mas esse filme acabou prendendo minha atenção desde o início. Não pelos efeitos visuais, maquiagem, etc. Muito mais pela mensagem subliminar que acabei captando. Uma visão pessoal, que me deu vontade de elaborar melhor. Aos que não viram o filme, devo avisar que vou contar o final. Decidam, então, nesse momento: preferem o fim do filme ou fim deste texto. Como já suponho a escolha, espero que voltem depois.

Geralmente, nos contos de fada, os papeis são bem estabelecidos. A princesa impecável, puríssima, já a vilã sempre muito cruel, sem coração, implacável. E a gente sempre espera um príncipe, que chega do nada, geralmente no final, beija a princesa e são felizes para sempre. Sim, um sempre que mal dura alguns poucos segundos em que a palavra “fim” se demora na tela. Viver feliz pra sempre, quando o sempre não existe é mole.

A primeira coisa que me causou estranhamento foi logo no início do filme quando a pequena fada voava alegre, descontraída, brincando com todos aqueles outros seres tão diversos. “Eu me chamo Malévola”. Como assim? Uma fada tão bonita, saltitante e bem relacionada. Como uma fada boa pode se chamar “Malévola”? Rótulos. Como eles podem ser cruéis e estagnantes. E como devemos estar atentos a eles. Quantos de nós não tem que passar boa parte da vida tentando se livrar de um nome, de uma marca, de um rótulo. Pode até parecer inofensivo quando ficamos no patamar dos estereótipos, como, por exemplo, costumo ouvir toda vez que digo que sou brasileiro em viagens pelo mundo a fora: “Brasil, futebol, samba, mulheres...”. No entanto, o estereótipo é primo-irmão do preconceito, e aí está o perigo. Cor da pele, gênero, orientação sexual, um cromossomo a mais nas células etc., não definem caráter nem são garantias de qualidades ou defeitos.

Malévola era uma criança boa, pura, que cresceu e se transformou numa jovem com suas questões, seus momentos difíceis, assumiu responsabilidades, pois demonstrou ser confiável. Malévola antes de qualquer coisa acreditou no amor. Mas como tantos, confiou e se envolveu com alguém que lhe tirou a liberdade, cortou suas asas. Sim, quantos não são os exemplos de pessoas que se entregam de corpo e alma a relacionamentos que aprisionam, castram, cortam asas. Pessoas que vivem presas por anos a fio a outras que lhes roubam a dignidade, a liberdade, os sonhos de uma vida inteira. Por outro lado, quanto mal a si próprio pode gerar uma vida dedicada a cultivar mágoas, vinganças, rancores. Como tudo isso pode nos privar de voar novamente, de pensar alternativas, mesmo quando nos faltam asas. De que vale nos cercamos de muros, a quem queremos atingir? Das poucas vezes que perdi meu tempo com mágoas e rancores, invariavelmente me arrependi. É pura falta de inteligência querer atingir alguém, cultivando um mal dentro nós mesmos. Geralmente, quando agimos tomados por estes sentimentos ruins, acabamos metendo os pés pelas mãos e cometemos erros difíceis de serem consertados, ainda que venhamos a nos arrepender. Não deixar ser atingido pelo outro é uma arte difícil de colocar em prática. Mas não há outro remédio, se o nosso desejo é paz de espírito e tranquilidade na vida.

Fato é que ninguém é totalmente mau nem totalmente bom. A diferença está em como conseguimos lidar com nossos monstros e sombras. O jovem Stefan se deixou tomar por uma ambição doentia, que o cegou a ponto de cortar as asas de alguém por quem ele nutria algo de bom – sim, pois ele não foi capaz de matá-la. Qualquer um de nós pode agir cegamente em certos momentos da vida. Nossos deslizes não podem nos congelar. No entanto, as escolhas vão construindo o caminho. O ponto de chegada é apenas consequência daquelas escolhas. O Rei Stefan poderia ter devolvido as asas de Malévola. Por que não as devolveu? O Rei Stefan diante da maldição, em vez de tentar buscar soluções realmente eficazes, escondeu sua filha e privou-se do convívio da mesma por dezesseis longos anos. Quando a reencontrou eram como dois estranhos. Não havia amor. Nem podia. Enquanto isso a pequena Aurora, livre de rótulos, de preconceitos, soube encarar sua sombra, conviver com ela, nunca ignorou a presença da mesma. Reconhecer nossa sombra é a forma mais eficaz de torna-la menos destrutiva, danosa. Todos nós temos um lado sombrio, que precisa ser identificado, conhecido, para que possa ser contido em muitos momentos. O conhecimento desse lado sombrio nos torna capazes de surpreendê-lo e, principalmente, ajuda-nos a buscar a melhor forma de lidar com ele, para que sejamos atingidos o menos possível. Se conseguimos alcançar esse equilíbrio, até mesmo a nossa sombra pode nos fazer melhores, mais firmes diante da vida.

Malévola me pareceu muito mais real. Alguém capaz de ser boa e má. De se deixar levar por momentos de raiva, de ódio. De querer vingar-se. De falar mais do que devia. Entretanto, alguém que se mostra arrependida, cai em si, e não paralisa diante das dificuldades. Que toma as rédeas e tenta solucionar mesmo o que parece impossível. Mesmo quando tudo parecia perdido, quando parecia não ter saída, ela conseguiu ser racional e tirar proveito do dragão furioso que levava consigo. Enquanto isso, como era de se esperar, seu lado bom, sua essência, sua capacidade de amar verdadeiramente, acabariam trazendo sua liberdade de volta, fazendo-a voar novamente. Mas é claro, foi preciso lutar e muito.

De fato, somos esse misto de bem e mal. É sábio reconhecer isso. Somos trevas e somos luz. E o bom da vida é construirmos a harmonia entre esses dois lados, para tirar proveito de cada um deles, sem nos deixar ferir ou paralisar diante das dificuldades e entraves da vida. Além disso, é saudável sabermos que a perfeição de nossas relações de amor – quaisquer que sejam – está no fato de nos reconhecermos imperfeitos, vítimas de circunstâncias, e que é possível aos que nos amam verdadeiramente cometer desacertos, coisas impensadas, que podem sim nos causar mal. Nós também fazemos isso. Porém, essas mesmas pessoas imperfeitas podem nos fazer despertar pra uma vida bem mais real. Pois são elas que estão sempre ao nosso lado. Muitas vezes, nos é que esperamos mais do que as pessoas realmente podem nos dar. Não por serem boas ou ruins, benévolas ou malévolas, mas por serem tudo isso junto e misturado.

É claro que, ao fim do filme, prevaleceu a máxima do “e viveram felizes para sempre”. O que pra mim não tem problema. Sou do tipo que vai pro cinema para ver final feliz, sempre. Porém, é muito mais crível uma felicidade que se constrói ao longo dos anos, com alguns momentos de alegria e outros de dor, de tristeza, de decepção, de luta. Essa historinha de príncipe que vem do nada, dá um beijo na bela princesa e tudo se resolve é pros fracos. Ser feliz pra sempre dá muito mais trabalho. Mas vale a pena. Afinal é pra isso que a gente vive, não é mesmo?

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terça-feira, 3 de junho de 2014

Festa

Em tempo de festas juninas... 

A dor e o dom de amar

Sentada sob as folhas da mangueira frondosa, com o corpo curvado, cabeça baixa, tinha as mãos presas por entre o vestido de chita rota. Suas pernas tremulavam naquela cadência angustiante, que denunciava seu estado de completa desesperança. Com semblante perdido e frio, ela ouvia o cantar melancólico das cigarras que anunciavam o fim do dia. Nunca apreciou o entardecer. Temia a chegada da noite. O rosto cansado trazia os olhos baços, pálpebras inchadas e cílios agrupados por lágrimas ressecadas. Deixou-se quase que ser arrastada para dentro de casa por Iracema Morena. Tomou um banho de água fria, querendo aliviar a dor de cabeça latejante. Passou o pente nos cabelos e com as mãos separou-os no meio, ajeitando por detrás das orelhas e prendendo num coque sem vaidade alguma. Sentou-se junto à mesa comprida de madeira envelhecida. Pediu que fechassem as janelas. Sentia frio. A escuridão da casa era interrompida apenas pelo brilho rubro da chama que ardia no fogão de lenha. O crepitar da madeira verde que ali queimava era também o único som que se ouvia naquela noite triste. Das Dores pôs a água pra ferver e jogou sobre a erva-cidreira. Coou num coador de pano e serviu-lhe o chá ainda quente. Ela tomou apenas um gole. Tinha um nó cego na garganta. Levantou-se e seguiu em direção ao oratório. Ouvia-se apenas o ranger da madeira por debaixo de seus pés. O vira-lata despertou, abriu os olhos e a seguiu resignado e em silêncio. Diante da imagem barroca da Senhora das Dores, ela prostrou-se de joelhos e não teve força pra dizer palavra. Chorou. Sentia uma dor forte, como se também ela tivesse uma espada transpassada no peito. Deitou-se na cama e cobriu-se com a colcha de retalhos meio esfarrapada. Apagou o candeeiro e de tão exausta adormeceu. Acordou no meio da madrugada e, com o coração descompassado, se deu conta que não se tratava de um pesadelo. Sua dor era real. Com o olhar vidrado, sozinha naquela noite infinda, seguia sem esperança. Seu amor foi-se embora.

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Esta manhã, ela acordou bem cedo. Abriu as janelas e a brisa leve que adentrou a casa fez tremular as cortinas de voal. Respirou o frescor da manhã e sentiu na pele o calor suave dos primeiros raios de sol. Hoje ela acordou bem cedo. Hoje ela voltou a sorrir. Abriu todas as janelas. Pôs os bordados na goma e a toalha pra quarar. Varreu casa e espanou poeira. Mandou que regassem as plantas e banhassem o vira-lata. Pediu à Das Dores que colhesse verduras e descascasse as batatas. Temperou a galinha caipira e pôs o fubá pra cozinhar. Fez doce de mamão verde e bom-bocado. Separou o licor de jenipapo. Colheu flores. Enfeitou a capela e acendeu vela. À Imaculada Conceição, fez uma singela oração. Ordenou à Rita de Tião que convidasse a vizinhança e a Joãozinho Ligeiro que contratasse o tal Chico Violeiro. Ferveu água na chaleira e amornou na bacia de ágata. Banhou-se com rosas brancas. Vestiu-se de renda fina e sandálias de couro cru. Penteou os cabelos e enfeitou-os com sempre-viva. Prendeu os brincos de pedrinha e colocou a pulseirinha dourada. Perfumou-se com um sândalo suave. Acendeu o candeeiro e pôs-se a esperar. Sentia uma felicidade imensa. Uma alegria infinda. A lua iluminava o quintal e as estrelas pareciam bordar o céu naquela noite. Pois que comecem a música e estourem os rojões. Acendam fogueira e dancem até o dia raiar. Hoje é dia de festa. Seu amor acabou de voltar!




sábado, 22 de março de 2014

Cauã é "Up"

Cauã é um nome tupi que significa “gavião”. Era o nome que o índios brasileiros usavam para designar as aves de rapina da família do falcão.

Na antiguidade, ao escolher o nome de um filho, seus pais pensavam muito no significado, pois acreditava-se que esse nome imprimiria na criança um destino, uma personalidade. O nome era quase uma profecia. Inúmeras vezes ouvi uma certa história a respeito de Alexandre da Macedônia. O guerreiro ouvira dizer que um de seus soldados vinha tendo atitudes inadequadas e trazendo problemas para seu exército. Alexandre, o Grande, dirigiu-se ao soldado, que – por coincidência – também chamava-se Alexandre, e disse-lhe: “Ou muda de nome, ou muda de atitude!”. Ainda hoje nas tribos indígenas brasileiras, os nomes marcam posições sociais e papéis cerimoniais, chegando quase a ter a função de títulos. Se um nome imprime personalidade, se o nome determina atitude, Cauã é aquele que abre asas e voa alto, que busca o céu, que atinge as alturas. Pois assim tem sido desde o dia em que ele nasceu.

Esse nosso Cauã tem honrado o seu nome.  Nosso pequeno "gavião" nasceu com essa sina de nos guiar para o alto. Nos elevar à condição de novas criaturas. Nos fazer alçar voos nunca antes imaginados. Com ele, temos voado em direção ao céu, ele tem nos enlevado, tem nos aproximado de Deus.

Cauã nasceu para nos fazer melhores, para nos fazer olhar o mundo com olhos mais humanos, pra nos lapidar, nos tornar especiais, privilegiados por tê-lo em nossas vidas. Assim temos nos sentido desde o dia em que ele nasceu. Cauã trouxe-nos o amor mais puro, o amor mais à flor da pele. Cauã é pra nós a oportunidade de crescermos como pessoas, é a águia que abrirá asas e nos guiará para o Alto. Cauã nos deu a precisa visão de um falcão, abriu-nos os olhos e fez-nos capazes de enxergar muito além do óbvio, do fácil. Cauã nos faz flutuar além das nuvens, nos permite plainar ao sabor do vento, em busca do desconhecido, mas na certeza de que podemos confiar em sua força, em sua garra de ave forte, que voa firme e decidida.

Cauã é a coroação de um amor que venceu barreiras, que se preservou no tempo. Cauã nasceu na família certa. A família que respeita as diferenças, que prova o amor na prática, na dor, na dificuldade. Cauã nasceu na família que acolhe os diferentes, pois aprendeu desde sempre que ser diferente é normal. Ser diferente é enriquecedor. Uma família em que o amor ao seus é o que está acima de qualquer convenção, de qualquer preconceito. Cauã é a certeza de que Deus olhou por nós, pois sua presença tem nos unido ainda mais. Cauã é Deus no controle.

Nosso Cauã nos coloca pra cima. Talvez, as almas mais sensíveis, os olhares mais atentos, já tenham percebido isso. Nosso “menino-gavião” tem esse dom de nos enlevar. Cauã nasceu com esse algo a mais. Algo cujo codinome mais importante é “oportunidade”. Oportunidade de mudar nossa história famíliar, como pais, avós, irmãos, primos, tios. Enfim, algo que fez despertar em nós uma certeza de que juntos somos mais fortes, e com ele seremos ainda melhores. Pois, também para nós, com o nosso menino, o céu será o limite. Afinal, nosso Cauã é “Up”.

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