sexta-feira, 20 de junho de 2014

É preciso saber viver, pois viver não é preciso.

Sentei à frente do computador com a ideia de escrever sobre as minhas primeiras impressões a respeito do novo CD de Maria Bethânia, “Meus Quintais”. Porém, há vezes em que as palavras se impõem de tal maneira, que parece até que elas têm vontade própria e se colocam quando e do modo como querem.

Em meio a tanta leitura a respeito do novo CD, entrevistas, vídeos, declarações, etc., acabei deparando-me novamente com um video-release em que a cantora fala sobre o porquê de seu novo trabalho trazer à tona suas memórias de menina, pendurada num galho de árvore, no quintal de sua casa em Santo Amaro da Purificação.

“É porque estou ficando velha, porque eu sinto falta disso, sinto falta de todos os meus que já se foram... que gostavam de mim... com muita coragem de dizer que gostavam”.

Nesse momento, sua voz fica embargada, ela respira fundo e a emoção toma conta por completo. Mostra-se a menina. Despe-se a cantora, a diva do imaginário popular. Diante da memória do seu quintal, de sua meninice, naquele instante, é como se nada mais fosse importante. A emoção tocou a essência do ser. Lembrei-me do meu encontro com ela, certa vez, e da dedicatória que dizia: “eu sou apenas uma mulher”. Entendi, finalmente, o que ela quis dizer.

Continuando a entrevista, em dado momento, ela afirma que não se sente saudosa, não sente falta da menina, pois a menina está sempre com ela. Sente falta dos seus, mas que, de alguma maneira, também estão com ela e nela. Veio-me então o “meu” menino, o meu quintal, o meu sobrado, e a mesma falta que sinto daquela que me ensinou tudo sobre “amor, festa e devoção”. Pra mim, também, essa falta nunca foi tristeza. Pelo contrário, sempre me impulsionou a seguir em frente. A presença tão nítida de minha avó em mim, nos meus gestos, em minhas atitudes frente à vida, tornou sua morte muito mais amena, bem menos dolorosa. Essa falta também tem me levado desde então ao meu quintal, onde continuo menino, onde sou mais eu.

De repente, em meio a toda essa reflexão, salta na tela do computador, uma foto de meu sobrinho, internado há alguns dias numa UTI infantil, com olhos vivos, atento, brincando embolado entre esparadrapos, mangueirinhas de soro, agulhas e acessos. A metáfora, por quem tanto tenho apreço, meteu-se em meio às palavras. Veio-me novamente minha avó e a mesma capacidade de não deixar a alegria sucumbir à dor.

É claro, que de alguma maneira isso está conectado com os “meus” de que Bethânia falou. Pois, nossas reações diante da vida dependem da fonte, da origem, daquilo que nos foi oferecido pelos “nossos”. E é nessas horas que instintivamente somos capazes de repetir os mesmos gestos, a mesma forma de lidar com o inesperado. “Tem a ver com o galho”. Tem a ver com a árvore, com as raízes, com o quintal. Tem a ver, por exemplo, com a nitidez com que vejo em meu sobrinho, mesmo que recém-nascido, a mesma atitude de não entregar-se a dor que via em minha avó. Tem a ver com o umbigo. É óbvio, tem a ver com os “meus”.

A perda, a falta dos que se foram, a emoção, a capacidade de superação, a metáfora, enfim, o livre arbítrio das palavras, acabaram por me trazer de volta o que disse em entrevista ao Fantástico o também cantor Erasmo Carlos, dez dias após a morte de seu filho, estreando uma nova turnê de shows:

“Todos têm sua cota de alegria e de sofrimento. Apenas chegou a hora. Algum dedo apontou pra mim e falou: ‘chegou a sua hora de sofrer um pouco’. Eu vivo esse momento. E daqui a pouco minha cota vai melhorar de novo”.

Desde quando assisti à entrevista, fiquei refletindo sobre essa necessidade de impor-se diante da dinâmica da vida. Superar-se é sempre uma escolha. Não paralisar diante do difícil, do dolorido, depende única e exclusivamente de nós mesmos, ainda que, geralmente, tenhamos que tomar essa decisão em momentos em que talvez o que mais quiséssemos era que tudo não passasse de um sonho, de uma cena de novela, de um faz-de-conta qualquer. Não foi sem sofrer, sem chorar, sem se despedaçar, que aquele pai decidiu que o show tinha que continuar.

Será atávica essa capacidade de escolher a alegria de viver? Esteve na mãe centenária da cantora, está na própria meninice da cantora. Esteve em minha avó, está no meu sobrinho. Esteve em minha irmã e em meu cunhado quando, ainda na sala de parto, não titubearam em escolher o caminho do amor incondicional. Esteve em mim e nos “meus” quando vimos pela primeira vez escritas num pedacinho de papel nas mãos daquela pediatra as palavras “síndrome de Down”.

É lógico que escolher seguir caminhando não elimina o sofrimento inerente ao caminho. Não é garantia de que não haverá dor ou tristeza, e, em certos momentos, desânimo. Porém, retirar a “pedra do caminho”, como diz a canção do Erasmo, é questão de escolha. E, diante da necessidade que se impõe, desviar sempre pode nos trazer novas paisagens, novas formas de ver a estrada pela frente. Para nós, naquele corredor da maternidade, onde passado, presente e futuro se compactaram num átimo, que fez o tempo parar e o chão desaparecer por alguns segundos, a “pedra” imediatamente se transformou em oportunidade. Oportunidade de nos tornarmos melhores humana e espiritualmente, de estarmos mais atentos ao diferente, mais consciente das necessidades do outro. Naquele instante, nos foi dada a chance de sermos melhores pais, avós, tios, padrinhos, irmãos, primos. E, novamente, o menino, a criança, se colocou acima de qualquer rótulo de perfeição. A frustração momentânea, hoje e a cada instante percebemos, estava muito mais ligada ao medo do novo do que à realidade em si, que tem sido muito melhor do que aquela “perfeita” que idealizamos. Tempo e perfeição ganharam significados muito melhores desde então.

Portanto, tolos são aqueles que acreditam que passarão pela vida sem sofrer. Ou aqueles que, na ânsia de proteger os seus, exageram na dose e os incapacitam para as surpresas da vida. Como diria a cantora, a “vida é real e de viés”. Não há como tornar-se imune ao sofrimento, a dor, a dúvida. Tudo isso faz parte do pacote. É importante que estejamos, senão totalmente preparados, ao menos conscientes do que podemos encontrar pelo caminho. Deus nos livre de só sabermos ser “alegres”, “eufóricos”, “de bem com a vida”. Isso é falso, é frágil. Aceitar o sofrimento não é questão de covardia ou de inércia frente ao ruim da vida. Muito pelo contrário, renegá-lo, ou tentar escondê-lo, é o que pode nos dar a falsa impressão de que tudo está bem. Quando não está. Desanimar faz parte. Nessas horas é que precisamos do menino, da criança, cujo compromisso primeiro é com a alegria de viver. “A arte de sorrir, cada vez que o mundo diz que não”. A sabedoria está em tomar a dor e seguir com ela, sem se deixar paralisar por previsões desanimadoras e rótulos preestabelecidos. Carregar a dor nos braços é domá-la, é dar a ela outras cores. Essa consciência de que o sofrimento faz parte da vida, torna-o até mais simpático, mais amigo. No fim das contas, as possibilidades, as alegrias vindas da superação são tantas que a parte dolorosa fica até meio perdida, esquecida pelo caminho.

Meu avô, que já viveu bastante, e que faz parte dos “meus” que gostam de mim, com coragem de dizer que gostam, vive insistentemente repetindo – traído por sua memória vacilante – que “viver é bom, porém, saber viver é que são elas”. Ele, certamente, não lembra mais de Erasmo e Bethânia, mas sua memória não falha em afirmar que “é preciso saber viver”, sem esquecer de que “viver não é preciso”, ou seja, não tem receitas, roteiros, nem fórmulas exatas. Viver se aprende vivendo. E como dizia o poeta, "eu francamente já não quero nem saber, de quem não vai por que tem medo de sofrer. Ai de quem não rasga o coração. Esse não vai ter perdão".

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Terminei esse texto, assistindo à vitória da seleção da Costa Rica sobre a tetracampeã mundial de futebol, Itália. No chamado grupo da morte, da Copa de 2014, composto pelo azarão Costa Rica e por três seleções campeãs mundiais – Itália, Uruguai e Inglaterra – todos apostavam que a Costa Rica seria facilmente eliminada. Só eles não. Resultado, em duas rodadas, é a única seleção do grupo já classificada para a próxima fase, eliminando todas as chances da Inglaterra e deixando Itália e Uruguai em situação bem complicada. Era exatamente dessa história de não acreditar em rótulos, de superação, que eu estava tentando falar.


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sexta-feira, 13 de junho de 2014

Sobre pontes, cadeados e namorados

Pont des Arts, Paris - Abril de 2014
Saiu nos jornais, esta semana, uma reportagem a respeito da famosa Pont des Arts em Paris, onde casais apaixonados tem o costume de colocar cadeados e jogar a chave fora nas águas do rio Sena, simbolizando o amor eterno. No último domingo, a ponte cedeu, devido ao peso dos milhares de cadeados presos às grades da mesma, precisando ser interditada, pois parte do alambrado caiu. Ao ler a reportagem fiquei pensando no quão metafórica essa situação poderia ser. Na verdade, das vezes que passei por essa ponte, e por tantas outras pelos lugares que já visitei, sempre fiquei imaginando coisas sobre as histórias de amor que estavam ali representadas. Fico lendo os nomes das pessoas, dos casais, as juras de amor eterno, etc. Alguns cadeados são mais simples, outros mais ostensivos, alguns bem pequeninos, outros enormes. Sempre me pergunto: “quantos desses casais ainda permanecem juntos?”.

Nesses dias em que muitas pessoas andaram postando declarações de amor, procurando presentes, enfrentando filas em restaurantes, etc., é de se pensar a importância do simbolismo de uma data, de uma tradição, de um ritual, como aquele de colocar um cadeado pendurado numa ponte. Eu seria muito vil se tentasse dizer que essa história de comemorar dia dos namorados, pendurar cadeado em pontes, etc. é uma tremenda bobeira. Definitivamente, não acho que seja. Rituais e simbolismos são bastante úteis para marcarmos o tempo de nossas histórias. Sou completamente adepto da celebração, da festa. Porém, não passou em branco pra mim, também, o simbolismo da ponte cedendo ao peso dos cadeados. Amor é leve. Amor não aprisiona.

Parece que não há receita mágica para o amor, nem símbolos são artefatos ou truques que retiramos de uma cartola ou canastrinha encantada. Portanto, é quase que intuitivo entender que de nada adianta prender cadeados em pontes, mandar flores, postar fotos e declarações de amor em um dia do ano, se tudo não passar de promessas vãs. A eficácia está em fazer valer a simbologia do ato em si. Transformar o sinal em realidade. Pra isso é preciso ir além do próprio simbolismo. Além da ponte, além das palavras que cabem numa postagem no facebook, além da floricultura, da lojinha no shopping, do restaurante chique e disputado. Enfim, é preciso fazer-se presente, esforçar-se, doar-se, surpreender não apenas numa manhã de junho, mas a todo instante. Um amor que se deseja pra sempre pode até prescindir de símbolos, ainda que eles sejam interessantes, mas certamente para se ter uma relação duradoura é imprescindível, acima de qualquer coisa, dedicação mútua.

Portanto, creio que seja saudável que amemos além dos dias oficialmente marcados no calendário para o amor, que dediquemo-nos nas situações mais simples e cotidianas. Que tal darmos de presente ao outro, a cada dia, a nossa paciência, a nossa compreensão, nossa capacidade de silenciar quando necessário? Que tal dizermos ao nosso par um “não” bem redondo na hora certa? Que tal não economizarmos as palavras de carinho, a boa companhia, a cumplicidade, a troca de olhares nos momentos difíceis? Que tal não nos omitirmos com relação àquilo que nos incomoda no outro? Não deixarmos o "pote até aqui de mágoas"? Não esperemos para ser românticos, carinhosos, compreensíveis, alegres, apenas quando isso nos parecer ser a derradeira tentativa de salvar nossas relações de amor. Antes, esforcemo-nos, dediquemo-nos ao outro, profilaticamente. Façamos valer a pena cada instante vivido juntos. Sejamos capazes de amar, principalmente, os defeitos do outro. Que tal presentearmos o nosso companheiro ou companheira com um projeto de vida real a dois, projeto esse que inclua o esforço para se ter o máximo possível de dias alegres, que – obviamente – inclua a capacidade de surpreender o outro com momentos românticos e presentinhos inesperados, com símbolos, mas não deixe de fora a paciência para dias mais difíceis, a capacidade de compreender o outro, respeitando seus dias menos nobres? A velha história do revezamento na função de segurar a lua nas noites da vida a dois.

Sinceramente, não gosto do cadeado – cuja chave se jogou fora – como símbolo de amor verdadeiro e eterno. Como já disse, amor pra mim é liberdade. É como diz o poeta: “é um estar-se preso por vontade” e não por falta de opção, porque a chave foi perdida. Pra mim, amar é ter a chave disponível para abrir o cadeado a qualquer momento e não fazê-lo, pois os laços são mais fortes. Amor não é nó cego. Amor é feito laço de seda, lindo, mas fácil de ser desfeito, se não prestarmos atenção o tempo todo, se não vigiarmos para que ele não fique frouxo e se desfaça. É essencial reforçar os laços sempre. Amor é aliança que cada um carrega consigo, elos que se unem não por correntes, feito algemas, mas por uma ligação que não se vê, apenas se sente.


Ainda com relação aos cadeados, eu acharia mais interessante uma tradição em que os apaixonados em vez de jogar a chave fora, guardassem-na e se comprometessem em voltar à ponte quando não pretendessem mais manter a relação a dois ou assim que percebessem que a paixão se transformou em amor de fato. Desta forma, a simbologia do abrir o cadeado e jogar a chave fora faria muito mais sentido, pois teria muito mais a ver com a liberdade que só um amor verdadeiro pode nos trazer. Ainda que seja o amor-próprio. E, do ponto de vista prático, de uma forma ou de outra, dificilmente a ponte cederia.


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sexta-feira, 6 de junho de 2014

Malévola, só que não!

Fui assistir ao filme Malévola, com Angelina Jolie, sem ler absolutamente nada a respeito. É o tipo de filme que eu geralmente não me interesso. Fui mais para fazer companhia do que outra coisa. Não sou cinéfilo,
 por mais que isso pareça um pecado, uma mancha no currículo. Além disso, sou daqueles que dorme fácil numa sala de cinema, se o filme não me interessar. Mas esse filme acabou prendendo minha atenção desde o início. Não pelos efeitos visuais, maquiagem, etc. Muito mais pela mensagem subliminar que acabei captando. Uma visão pessoal, que me deu vontade de elaborar melhor. Aos que não viram o filme, devo avisar que vou contar o final. Decidam, então, nesse momento: preferem o fim do filme ou fim deste texto. Como já suponho a escolha, espero que voltem depois.

Geralmente, nos contos de fada, os papeis são bem estabelecidos. A princesa impecável, puríssima, já a vilã sempre muito cruel, sem coração, implacável. E a gente sempre espera um príncipe, que chega do nada, geralmente no final, beija a princesa e são felizes para sempre. Sim, um sempre que mal dura alguns poucos segundos em que a palavra “fim” se demora na tela. Viver feliz pra sempre, quando o sempre não existe é mole.

A primeira coisa que me causou estranhamento foi logo no início do filme quando a pequena fada voava alegre, descontraída, brincando com todos aqueles outros seres tão diversos. “Eu me chamo Malévola”. Como assim? Uma fada tão bonita, saltitante e bem relacionada. Como uma fada boa pode se chamar “Malévola”? Rótulos. Como eles podem ser cruéis e estagnantes. E como devemos estar atentos a eles. Quantos de nós não tem que passar boa parte da vida tentando se livrar de um nome, de uma marca, de um rótulo. Pode até parecer inofensivo quando ficamos no patamar dos estereótipos, como, por exemplo, costumo ouvir toda vez que digo que sou brasileiro em viagens pelo mundo a fora: “Brasil, futebol, samba, mulheres...”. No entanto, o estereótipo é primo-irmão do preconceito, e aí está o perigo. Cor da pele, gênero, orientação sexual, um cromossomo a mais nas células etc., não definem caráter nem são garantias de qualidades ou defeitos.

Malévola era uma criança boa, pura, que cresceu e se transformou numa jovem com suas questões, seus momentos difíceis, assumiu responsabilidades, pois demonstrou ser confiável. Malévola antes de qualquer coisa acreditou no amor. Mas como tantos, confiou e se envolveu com alguém que lhe tirou a liberdade, cortou suas asas. Sim, quantos não são os exemplos de pessoas que se entregam de corpo e alma a relacionamentos que aprisionam, castram, cortam asas. Pessoas que vivem presas por anos a fio a outras que lhes roubam a dignidade, a liberdade, os sonhos de uma vida inteira. Por outro lado, quanto mal a si próprio pode gerar uma vida dedicada a cultivar mágoas, vinganças, rancores. Como tudo isso pode nos privar de voar novamente, de pensar alternativas, mesmo quando nos faltam asas. De que vale nos cercamos de muros, a quem queremos atingir? Das poucas vezes que perdi meu tempo com mágoas e rancores, invariavelmente me arrependi. É pura falta de inteligência querer atingir alguém, cultivando um mal dentro nós mesmos. Geralmente, quando agimos tomados por estes sentimentos ruins, acabamos metendo os pés pelas mãos e cometemos erros difíceis de serem consertados, ainda que venhamos a nos arrepender. Não deixar ser atingido pelo outro é uma arte difícil de colocar em prática. Mas não há outro remédio, se o nosso desejo é paz de espírito e tranquilidade na vida.

Fato é que ninguém é totalmente mau nem totalmente bom. A diferença está em como conseguimos lidar com nossos monstros e sombras. O jovem Stefan se deixou tomar por uma ambição doentia, que o cegou a ponto de cortar as asas de alguém por quem ele nutria algo de bom – sim, pois ele não foi capaz de matá-la. Qualquer um de nós pode agir cegamente em certos momentos da vida. Nossos deslizes não podem nos congelar. No entanto, as escolhas vão construindo o caminho. O ponto de chegada é apenas consequência daquelas escolhas. O Rei Stefan poderia ter devolvido as asas de Malévola. Por que não as devolveu? O Rei Stefan diante da maldição, em vez de tentar buscar soluções realmente eficazes, escondeu sua filha e privou-se do convívio da mesma por dezesseis longos anos. Quando a reencontrou eram como dois estranhos. Não havia amor. Nem podia. Enquanto isso a pequena Aurora, livre de rótulos, de preconceitos, soube encarar sua sombra, conviver com ela, nunca ignorou a presença da mesma. Reconhecer nossa sombra é a forma mais eficaz de torna-la menos destrutiva, danosa. Todos nós temos um lado sombrio, que precisa ser identificado, conhecido, para que possa ser contido em muitos momentos. O conhecimento desse lado sombrio nos torna capazes de surpreendê-lo e, principalmente, ajuda-nos a buscar a melhor forma de lidar com ele, para que sejamos atingidos o menos possível. Se conseguimos alcançar esse equilíbrio, até mesmo a nossa sombra pode nos fazer melhores, mais firmes diante da vida.

Malévola me pareceu muito mais real. Alguém capaz de ser boa e má. De se deixar levar por momentos de raiva, de ódio. De querer vingar-se. De falar mais do que devia. Entretanto, alguém que se mostra arrependida, cai em si, e não paralisa diante das dificuldades. Que toma as rédeas e tenta solucionar mesmo o que parece impossível. Mesmo quando tudo parecia perdido, quando parecia não ter saída, ela conseguiu ser racional e tirar proveito do dragão furioso que levava consigo. Enquanto isso, como era de se esperar, seu lado bom, sua essência, sua capacidade de amar verdadeiramente, acabariam trazendo sua liberdade de volta, fazendo-a voar novamente. Mas é claro, foi preciso lutar e muito.

De fato, somos esse misto de bem e mal. É sábio reconhecer isso. Somos trevas e somos luz. E o bom da vida é construirmos a harmonia entre esses dois lados, para tirar proveito de cada um deles, sem nos deixar ferir ou paralisar diante das dificuldades e entraves da vida. Além disso, é saudável sabermos que a perfeição de nossas relações de amor – quaisquer que sejam – está no fato de nos reconhecermos imperfeitos, vítimas de circunstâncias, e que é possível aos que nos amam verdadeiramente cometer desacertos, coisas impensadas, que podem sim nos causar mal. Nós também fazemos isso. Porém, essas mesmas pessoas imperfeitas podem nos fazer despertar pra uma vida bem mais real. Pois são elas que estão sempre ao nosso lado. Muitas vezes, nos é que esperamos mais do que as pessoas realmente podem nos dar. Não por serem boas ou ruins, benévolas ou malévolas, mas por serem tudo isso junto e misturado.

É claro que, ao fim do filme, prevaleceu a máxima do “e viveram felizes para sempre”. O que pra mim não tem problema. Sou do tipo que vai pro cinema para ver final feliz, sempre. Porém, é muito mais crível uma felicidade que se constrói ao longo dos anos, com alguns momentos de alegria e outros de dor, de tristeza, de decepção, de luta. Essa historinha de príncipe que vem do nada, dá um beijo na bela princesa e tudo se resolve é pros fracos. Ser feliz pra sempre dá muito mais trabalho. Mas vale a pena. Afinal é pra isso que a gente vive, não é mesmo?

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terça-feira, 3 de junho de 2014

Festa

Em tempo de festas juninas... 

A dor e o dom de amar

Sentada sob as folhas da mangueira frondosa, com o corpo curvado, cabeça baixa, tinha as mãos presas por entre o vestido de chita rota. Suas pernas tremulavam naquela cadência angustiante, que denunciava seu estado de completa desesperança. Com semblante perdido e frio, ela ouvia o cantar melancólico das cigarras que anunciavam o fim do dia. Nunca apreciou o entardecer. Temia a chegada da noite. O rosto cansado trazia os olhos baços, pálpebras inchadas e cílios agrupados por lágrimas ressecadas. Deixou-se quase que ser arrastada para dentro de casa por Iracema Morena. Tomou um banho de água fria, querendo aliviar a dor de cabeça latejante. Passou o pente nos cabelos e com as mãos separou-os no meio, ajeitando por detrás das orelhas e prendendo num coque sem vaidade alguma. Sentou-se junto à mesa comprida de madeira envelhecida. Pediu que fechassem as janelas. Sentia frio. A escuridão da casa era interrompida apenas pelo brilho rubro da chama que ardia no fogão de lenha. O crepitar da madeira verde que ali queimava era também o único som que se ouvia naquela noite triste. Das Dores pôs a água pra ferver e jogou sobre a erva-cidreira. Coou num coador de pano e serviu-lhe o chá ainda quente. Ela tomou apenas um gole. Tinha um nó cego na garganta. Levantou-se e seguiu em direção ao oratório. Ouvia-se apenas o ranger da madeira por debaixo de seus pés. O vira-lata despertou, abriu os olhos e a seguiu resignado e em silêncio. Diante da imagem barroca da Senhora das Dores, ela prostrou-se de joelhos e não teve força pra dizer palavra. Chorou. Sentia uma dor forte, como se também ela tivesse uma espada transpassada no peito. Deitou-se na cama e cobriu-se com a colcha de retalhos meio esfarrapada. Apagou o candeeiro e de tão exausta adormeceu. Acordou no meio da madrugada e, com o coração descompassado, se deu conta que não se tratava de um pesadelo. Sua dor era real. Com o olhar vidrado, sozinha naquela noite infinda, seguia sem esperança. Seu amor foi-se embora.

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Esta manhã, ela acordou bem cedo. Abriu as janelas e a brisa leve que adentrou a casa fez tremular as cortinas de voal. Respirou o frescor da manhã e sentiu na pele o calor suave dos primeiros raios de sol. Hoje ela acordou bem cedo. Hoje ela voltou a sorrir. Abriu todas as janelas. Pôs os bordados na goma e a toalha pra quarar. Varreu casa e espanou poeira. Mandou que regassem as plantas e banhassem o vira-lata. Pediu à Das Dores que colhesse verduras e descascasse as batatas. Temperou a galinha caipira e pôs o fubá pra cozinhar. Fez doce de mamão verde e bom-bocado. Separou o licor de jenipapo. Colheu flores. Enfeitou a capela e acendeu vela. À Imaculada Conceição, fez uma singela oração. Ordenou à Rita de Tião que convidasse a vizinhança e a Joãozinho Ligeiro que contratasse o tal Chico Violeiro. Ferveu água na chaleira e amornou na bacia de ágata. Banhou-se com rosas brancas. Vestiu-se de renda fina e sandálias de couro cru. Penteou os cabelos e enfeitou-os com sempre-viva. Prendeu os brincos de pedrinha e colocou a pulseirinha dourada. Perfumou-se com um sândalo suave. Acendeu o candeeiro e pôs-se a esperar. Sentia uma felicidade imensa. Uma alegria infinda. A lua iluminava o quintal e as estrelas pareciam bordar o céu naquela noite. Pois que comecem a música e estourem os rojões. Acendam fogueira e dancem até o dia raiar. Hoje é dia de festa. Seu amor acabou de voltar!