sábado, 19 de julho de 2014

Carta para Rubem Alves, esse amigo que nunca me viu.

Querido amigo-que-nunca-me-viu,

“Eu tenho muitos amigos que continuam a gostar de mim, a despeito de me conhecerem. E tenho também muitos amigos que nunca vi”. (Rubem Alves)

Hoje, dia do meu aniversário,  dentre as muitas mensagens recheadas de desejos de felicidade que tilintavam em meu celular, uma amiga, que você também nunca viu, mas que temos em comum, me dizia: “O Rubem Alves faleceu L”. Imediatamente fui tomado por um pesar, uma tristeza, daquelas que a gente só sente quando perde um amigo querido.

Há menos de uma semana, entrei numa livraria para comprar um presente e escolhi um livro seu. Gostei tanto do livro que desisti de dar de presente e fiquei com ele pra mim. Hoje ao saber da notícia de sua morte, corri para abrir o meu presente... e ler suas passagens da alma e pensei: “meu Deus, quanto tem de mim nisso tudo”. Obrigado, pelo lindo presente. 

Desde que li um texto seu pela primeira vez, fiquei encantado com sua forma de olhar o mundo, a visão tão leve e o pensamento preciso a respeito da simplicidade da vida. Quantas então não foram as vezes que você me acompanhou em minhas viagens, nas intermináveis horas dentro de um avião, nas salas de espera da vida. Desde então, ao ler os seus livros, seus pensamentos, é como se eu estivesse conversando com um amigo querido, um amigo mais experiente, muito mais sábio, com um jeito de pensar muito leve e libertador. Obrigado por me fazer entender que "pensar é voar sobre o que não se sabe".

Quantas e quantas vezes, fomos apenas você e eu. No silêncio do meu apartamento, na contraluz da luminária, varamos madrugadas conversando deliciosamente. Você me fazendo rir, me fazendo chorar, enchendo meu coração de esperança na vida, nas pessoas, me ensinando a ser melhor professor, educador, ser humano. Me fazendo sentir privilegiado pela nobreza do meu ofício.

Eu não posso deixar de te agradecer pelo tanto que me ensinou a respeito de catar a poesia que se derrama no dia-a-dia, na simplicidade das coisas, no belo da natureza. Você me ensinou que “os olhos são pintores: pintam o mundo de fora com as cores que moram dentro deles”. Me ensinou a colher o dia como quem colhe morangos vermelhos à beira do abismo. Até da culpa de às vezes ser preguiçoso você me livrou, me dizendo que a “preguiça é a virtude dos seres que estão em paz com vida”. Sempre lembro disso quando tenho umas provas e relatoriozinhos pra corrigir e me apega a isso com toda força.

Sabe, eu vou viver não sei quantos dias e talvez não serei capaz de agradecer o quanto você me ensinou sobre Deus. Você me ajudou a tirá-lo das gaiolas em que eu o havia aprisionado. Você me apresentou um Deus tão mais leve, tão mais Amor, Inteligência e Liberdade. Você me apresentou um Deus que não vive enclausurado em templos, mas anda pelos jardins. Como poderei retribuir isso?

Lembra quando você me disse certa vez que “o sonho de cruzar os mares precede a ciência de construir navios”? Eu entendi desde então que era preciso sonhar sempre, pois o sonho é a força motriz da realidade. Foi também em uma de nossas inúmeras conversas que aprendi a empurrar o balanço da criança que existe em mim com as duas mãos, aproveitando o momento intensamente, vivendo o presente, e deixando pra lá o jornal cheio de notícias desanimadores, que eu lia enquanto empurrava o meu menino. Aprendi mais do que nunca que saber ser criança é a receita da felicidade. 

Lembra do pé de jabuticaba, cheinho de bolotinhas? Ai como eu aproveitei. Como eu fui e voltei naquele pé várias e várias vezes desde então. Lembra de mim chupando os carocinhos da fruta-do-conde com as crianças? Lembra daquela minha azaleia, que nada sabe de química, biologia, física, mas que como nenhum cientista consegue transformar o que absorve da terra e devolver-me como num encanto lindas flores lilases que me fazem lembrar de uma avó querida? Pois, então, ela ainda está por aqui e dá flores cada dia mais lindas. Dia desses, eu plantei alecrim e hortelã, e vingou. Foi você que me ensinou que cultivar jardins era importante. O alecrim anda perfumando minha casa.

Como não lembrar de você diante de folhas amarelas de Ipê caídas lá na estrada que me levava para o encontro com o rio, o velho Chico. E mesmo ao mergulhar no rio, ou estar sentado à beira dele, ou mesmo à sombra de um enorme flamboyant, com aqueles meus amigos que você me ensinou a valorizar e a aproveitar cada momento junto deles, pois “estar junto é divino. Deus mora nos intervalos entre as pessoas que se amam”.

Querido amigo, não fica preocupado comigo. Hoje, também por causa de você, eu respeito meus momentos de tristeza e dor, pois a tristeza também pode ser bela e como você mesmo me ensinou “ostra feliz não faz pérola”. Sei que você não tinha medo da morte, só queria era ficar por aqui, por achar o mundo tão bonito! Mas como você mesmo dizia, “escrever é o meu jeito de ficar por aqui. Cada texto é uma semente. Depois que eu for, elas ficarão”. Você estava certo. Como disse, outra velhinha amiga, também muito sábia, "não morre aquele que deixou na terra a melodia do seu cântico na música de seus versos". Por aqui você plantou jardins. Você ficou. E ficará pra sempre.

Dizem por aí que morrer é passagem, é nascer de novo. Sendo assim, poderemos comemorar nossos aniversários juntos a partir de agora e pra sempre. E, por falar em aniversário, vou ficando por aqui. Ainda estou cheio de coisas pra fazer, vai ter festa amanhã. Só parei para um papinho rápido. Abri o armário e vi que ainda tenho muitos e muitos livros seus para ler. Que bom. Logo, logo, volto e a gente coloca a conversa em dia. No mais, feliz vida eterna pra você. Nos vemos no tempo da delicadeza!


Desse seu amigo que você nunca viu.



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Um comentário:

  1. Sinto falta de saber que poderei a qualquer momento vê-lo num novo bate-papo...mas ao mesmo tempo sei que os papos que batemos estarão sempre ali para revisitá-los. Mais um primor de texto amigo! Eu também era amiga dele... e que bom que sou sua amiga!! (Dani Brites)

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