terça-feira, 23 de setembro de 2014

Sobre rainhas...


Também pra mim, rezar a Salve Rainha é como ouvir poesia. Aprendi essa oração com minha avó, que gostava muito dela. Ela dizia que devíamos rezar a Salve Rainha nos momentos mais difceis, pois era uma oração muito poderosa. Hoje quando vou caminhando para o trabalho, passo todos os dias por uma linda capelinha dedicada a N. Sra. da Conceição e sempre me lembro dessa oração e consequentemente da minha avó. Rezo quase que instintivamente a Salve Rainha, olho pro Céu, esteja ele azul ou nublado, peço luz para alma de minha avó. Em dias de sorte, encontro pelo caminho uma maria-sem-vergonha ou florzinha lilás qualquer, cor preferida de minha avó, e a singeleza da flor é como um afago daquelas que ela me dava. Assim, desde então a saudade vai amenizando.



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Saudade atávica de Portugal



Tenho uma saudade atávica de Portugal. Hoje, ouvindo canções lusitanas, lembrei-me de Portugal, de Lisboa, de mim sentado à beira do Tejo, do por-do-sol na Ribeira, das gaivotas sobrevoando o Douro. Sinto essa saudade de algo que não vivi, saudade que veio na memória, herança de meus bisavós, de algo que ficou deles em mim, em minhas células, em meu código genético. Lembrei-me do que senti ao chegar no Porto, da incrível sensação de estar voltando àquela terra tão minha, mas que no entanto nunca tinha colocado os pés. Foi como se o desejo de um dia retornar à terrinha, que certamente esteve no coração de S. Manoel e D. Josephina, que partiram de sua pátria, das terras de trás-os-montes, passando dias a cruzar o Atlântico, em busca de uma terra de esperanças, de sonhos, tivesse finalmente sido cumprido. Eu, que não convivi com eles, não tenho lembranças, chorei de uma alegria tão minha, como se de fato voltasse à terra de onde um dia havia partido. Senti como se tivesse finalmente libertado da alma deles a saudade que nem a morte pode findar. O fado me emociona de um jeito, que suponho só um português pode sentir, e eu sinto isso nitidamente. Tenho uma saudade de Portugal que às vezes me chega a doer.

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Eu vi o amor...


Hoje, em meio à correria do meu dia, entre engarrafamentos na Av. Brasil e Linha Vermelha, longa espera para uma consulta de minha mãe no HCE, dei uma passada na casa de minha irmã para ver meus sobrinhos. Tudo muito cotidiano. No entanto, fui pego por uma emoção muito grande quando vi, como tantas outras vezes, minha irmã interagindo com meu sobrinho mais novo. Eu fiquei realmente muito comovido e pude sentir nitidamente a força da relação entre os dois. Vi como ele, apesar dos poucos meses de vida, olha para ela com um amor que sai pelos olhos, que o faz sorrir de alegria, numa felicidade que emana e contagia quem está por perto. Por outro lado, ela também brincando com ele, beijando, acariciando, com um amor que é lindo de se ver. Eu vi a alma dos dois sorrindo uma pra outra. Minha irmã não planejava mais ter filhos, sempre foi uma mãe dedicada à educação das crianças, e quem conhece meus sobrinhos, sabe exatamente do que estou falando. O Cauã nasceu de um reencontro após vinte anos. Desde o primeiro momento em que minha irmã soube, ainda grávida de poucos meses, da possibilidade dele ter Síndrome de Down, ela sempre se mostrou confiante, guerreira e pronta a abraçar essa missão, se essa fosse a vontade Deus pra vida dela. Cauãzinho nos surpreende a cada dia, superando as dificuldades e derrubando todos os mitos a respeito dos bebês com Síndrome de Down. Minha irmã tem sido incansável na dedicação à estimulação tão essencial para o desenvolvimento do meu sobrinho, através das sessões de fisioterapia, fonoaudiologia e terapia ocupacional, praticamente todos os dias da semana. É óbvio que tudo isso só é possível devido ao suporte e carinho do meu cunhado. Hoje eu pude de fato perceber o quanto é importante o amor e a dedicação dos pais a seus filhos. Tanto pela relação dela com o Cauã quanto pela parceria dos irmãos mais velhos, que ajudam e também demostram enorme carinho pelo caçula. Seus cabelos estavam meio emaranhados, as unhas sem esmalte, a sobrancelha por fazer. Porém, que importância pode ter isso? Qual o tamanho real dessas coisas? Hoje eu vi no olhar trocado entre ela e ele um amor incondicional, uma gratidão que brota dos olhos daquele bebê, como se ele dissesse a todo tempo: "mamãe, obrigado por me fazer o bebê mais feliz desse mundo". Saí desta visita corriqueira, inesperada, com meu espírito enlevado! Obrigado também por isso, irmã. Te amo muito!


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domingo, 14 de setembro de 2014

Ser diferente é exatamente igual

Pela primeira vez, estivemos só nós dois. Eram sete da manhã. Ele veio todo arrumadinho, jardineira jeans, body laranja, tênis. Olhos amendoados que prestavam atenção em tudo. Coloquei-o na cadeirinha atrás do carro. Ele ficou lá quietinho, olhando de vez em quando pra rua, outras vezes fixo pra mim, que dirigia, e vez ou outra olhava pra trás. O samba, daqueles do recôncavo, na voz de Bethânia, que tocava no CD player me fez lembrar de outro menino que há alguns anos atrás dizia: “tio, põe aquela dos camaradas”. Em pouco tempo, com o balanço do carro, ele pegou no sono. Eu fiquei pensando em como tudo é igual, tentando imaginar o que estaria passando pela cabeça daquele menino, com quem estaria sonhando naquele momento? Não houve tempo de lembrar da diferença. Como ele, eu também não me dava conta de que havia um cromossomo a mais. Mas isso de fato deveria ser lembrado? Não. Pois nada muda. Ser diferente é exatamente igual. Dormia ali a mesma inocência, com seu tempo de viver descobertas, de amar, de dar e receber carinho, de sentir dor, de ficar triste, de estar alegre. O diferente sorri e chora, como todo mundo.

         Só agora, enquanto escrevo, me veio à mente o dia em que soubemos que aquele bebê, que pela força do destino, ou mesmo das circunstâncias, nascia em nossa família, era “especial”. Especial era a palavra escolhida então para amenizar ou nos convencer de algo que naquele momento daríamos tudo pra mudar. Lembrei-me da nossa primeira foto em família, da pediatra que insistia em tirar a foto do grupo. Da alegria que parecia inabalável e que durou parcos minutos. Meu cunhado com aquele roupão verde, enquanto o bebê ainda meio ensebado se agitava na incubadora, me dizia: “nossas expectativas se confirmaram, ele tem síndrome de down”. Expectativas?! Como de costume, diante de notícias inesperadas, eu tentei manter a calma e dar a mim mesmo alguns segundos para entender o que estava acontecendo. Enquanto todos olhavam o bebê mais agitado, mais esperto do berçário, felizes, orgulhosos, avó, tia, padrinho, eu fiz parar o tempo ao meu redor e projetei todas as dificuldades, limitações, preconceitos, que ele sofreria. Diante do inesperado, do pouco provável, eu me perguntava o porquê daquilo estar acontecendo conosco. Por que quis o destino nos colocar naquela situação após vinte anos, quando não esperávamos mais um bebê na família, quando já nos sentíamos aliviados de sermos todos "perfeitos". Por quê? 

A resposta a essa pergunta veio muito antes do que eu poderia supor. A alegria que inundava aquele quarto da maternidade, o sorriso no rosto de minha irmã, o amor vazando pelos olhos de meu cunhado, não eram diferentes. Tudo igual às outras quatro vezes que havíamos passado por aqueles momentos, quando as crianças que haviam nascido eram "perfeitas" como sonháramos, numa época em que nem nos preocupávamos em contar cromossomos. A cada um que chegava, irmãos, primos, avós, tios, todos tinham a mesma reação. Eu via ali, diante dos meus olhos, aquela minha gente pondo em prática tudo que havíamos aprendido desde sempre, e não podia ser diferente, pois havíamos apreendido o amor, havia o vínculo que nos marcava como família, de sangue ou não. 

Desde então tudo o que sinto é orgulho de pertencer a essa gente, que caminha comigo, que sonha comigo. Falo obviamente da família, dos irmãos, dos pais, sobrinhos, dos tios, primos, mas falo como o mesmo orgulho também dos amigos, irmãos de alma, que o acaso, destino, circunstâncias, Deus, ou o que seja, colocou no meu caminho.

Eu e ele sozinhos pela primeira vez. Pensei no quanto a vida da gente é surpreendente e dinâmica. Pensei na oportunidade que havíamos recebido. Mas sobretudo me senti feliz, concretamente feliz, sim uma felicidade palpável, essa que tem nos feito experimentar na realidade tudo o que tem acontecido desde que esse menino veio conviver conosco. As experiências da família que está unida em qualquer situação, das minhas irmãs, do quanto conseguimos dar suporte uns aos outros, do quanto conseguimos dosar as nossas diferenças e conseguimos conviver esse amor fraternal de forma tão real, concreta, sem firulas de fotografias. Minha mãe e sua capacidade de lidar com tudo isso, de forma tão sábia, seu amor que está acima de qualquer dificuldade, de sua capacidade de não se permitir contaminar por preconceitos e padrões. Meus sobrinhos tão lindamente humanos, carinhosos, vivendo essa forma tão independente de amor, de família, o quanto eles se tornarão seres humanos melhores, mais antenados às dificuldades e as complexidades do indivíduo e como é possível superar e tornar as coisas verdadeiramente mais fáceis, quando se caminha junto. Do amor que transborda e alinhava minha relação de cumplicidade, companheirismo de uma vida inteira, do quanto isso tudo tem acrescentado ao nosso cotidiano. Enfim, da capacidade de se deixar invadir e transformar-se por essa criança que temos em comum.

Onde ficaram aquelas preocupações todas? Onde foi parar o medo do futuro? Que certezas podemos ter a respeito da vida? Todos somos limitados, de alguma forma. Quais as garantias que temos de que seremos felizes, de que alcançaremos nossos objetivos? O fato de termos um cromossomo a menos nos dá algum passaporte para um futuro fácil, com felicidade, realizações, garantias, sucesso? O que é ser perfeito? Naquele dia, quando ouvi pela primeira vez a frase “está confirmado, nosso Cauã tem Down”, eu tive medo de todas essas perguntas e por intermináveis segundos, o tempo parou, congelou. Hoje, passados seis meses, depois que o tempo voltou ao seu curso, em que vimos vivendo um dia após o outro, em que cada etapa é vencida, cada mito cai por terra. É como se juntos, todos nós, subíssemos no mesmo pódio a todo tempo, mostrando ao mundo que nós temos um troféu, nós ganhamos a mais perfeita coroa de louros. 

Não preciso convencer ninguém de nada, nem a mim mesmo eu preciso. É obvio que não nos foi dada possibilidade de escolha, e o incrível da vida está aí. Não vou me colocar na posição de que se pudesse escolher... pois, de fato, nem sempre nos é dada essa oportunidade. No entanto, quando podemos, que façamos como temos feito, escolhamos ser felizes em fazer do que temos a grande oportunidade de nos tornamos seres humanos melhores, de colocarmos em prática a firmeza de caminharmos juntos, de suportarmo-nos mutuamente. Também não vou dizer que tem sido difícil, pois me parece que depois dele tem sido tão mais prazeroso, tão mais doce, mais leve, viver. Ainda não tenho todas as respostas para as perguntas que me afligiram naquele instante, mas elas também não me afligem mais. O que tenho hoje me sustenta, me fortalece, me fez sentir especial, por ter sido escolhido pela vida para viver essa experiência. Ainda há dúvidas, como sempre houve e sempre haverá. Como disse, não há garantias. Mas isso não é privilégio de quem tem um cromossomo a mais. A incerteza faz parte da vida. No entanto, as certezas ficaram mais claras desde então. Não sei como será o futuro, e nunca haveria de saber. Contento-me com o presente. E esse cromossomo a mais, sem exagero, tem sido o melhor de todos eles.



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